Caso Maluf: ilegalidade patente e pendência de outro HC no STJ

g11.jpgA Súmula 691, pelo seu teor literal (?Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão de relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.?), não permite que o STF conheça de HC quando relator de tribunal superior tenha indeferido liminar em outra ação constitucional idêntica. Formalmente, portanto, não podia mesmo o STF ter conhecido do HC impetrado pelos Malufs (pai e filho). Apesar do seu não conhecimento, é certo que referido Tribunal acabou concedendo o HC de ofício (HC 86.864-SP, rel. Min. Carlos Velloso, j. 20.10.2005).

Essa questão já tinha sido objeto de discussão no Pleno do STF. Em 10.08.2005 debateu-se o cancelamento da referida Súmula. Por maioria de votos, deliberou-se negativamente, mas, de qualquer modo, foi concedido o HC em razão da flagrante ilegalidade. Sintetizando: quando se trata de ilegalidade patente, o STF não conhece do HC impetrado contra o indeferimento de liminar, mas pode conceder o HC de ofício (HC 85.185/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 10.8.2005).

Essa foi a lógica adotada no caso Maluf. A prisão, pelo que se sublinhou, foi bem decretada, mas poucos dias depois perdeu seu motivo. Decretou-se o cerceamento da liberdade por conveniência da instrução criminal (obstáculo à colheita da prova). Alguns dias após a pessoa que teria sido ameaçada prestou seu depoimento regularmente. A partir daí perdeu sentido a prisão cautelar. Conclusão: a prisão foi bem decretada e também foi bem revogada.

Quando o STF (ou qualquer outro juiz ou tribunal do país) toma conhecimento de uma ilegalidade patente, pode e deve conceder HC de ofício. O direito à liberdade vale mais que o teor da súmula 691 do STF. Por isso, em casos excepcionais, ela não pode constituir obstáculo para se desfazer uma ilegalidade. Fosse o contrário prosperaria a denegação da justiça. O STF, como máximo intérprete da Constituição e última esperança do injustiçado, não pode se curvar à insensibilidade.

A súmula 691, diante de tudo que foi exposto, deve ser cancelada (e o será, certamente, em breve). Mas enquanto isso não acontece, deve ser reinterpretada. A nova leitura nos conduz a concluir que podemos não aguardar o julgamento do mérito do HC denegado no STJ (v.g.), em sede de liminar. Cuidando-se, entretanto, de ilegalidade patente, abre-se a porta do STF para aniquilar a coação ilegítima.

O que acaba de ser realçado encontra ressonância no chamado princípio da indeclinabilidade da jurisdição, isto é, quando há uma ilegalidade patente, o juiz ou tribunal não pode se omitir. Cabe a qualquer juiz ou mesmo à Suprema Corte corrigir a ilegalidade. O contrário disso significa negar a própria condição de juiz, assim como a missão constitucional da jurisdição, que consiste precipuamente em corrigir desmandos e abusos.

Ninguém mais pode ignorar que a garantia da jurisdição é a garantia das garantias (ou garantia de fechamento, como sublinha a doutrina española cf. PEÑA FREIRE, Antonio Manuel, La garantia en el Estado constitucional de derecho, Madrid: Trotta, 1997, p. 227 e ss.), sobretudo em matéria de liberdade. Deparando-se (o órgão competente) com flagrante ilegalidade, especialmente quando gerada a partir da negação de uma liminar por tribunal superior, não há dúvida que ele deve intervir, para afastar o constrangimento ilegal.

Do contrário não haveria jurisdição efetiva. Não pode o STF, destarte, dentro do seu âmbito de competência, interpretar o ordenamento jurídico de modo restritivo em termos de tutela das liberdades. O juiz do terceiro milênio já não se submete a uma vinculação inarredável com o texto legal. Seu compromisso é com a Constituição e seus valores superiores. Se a justiça é o valor-meta de todo Estado Constitucional e Democrático de Direito, não pode o Judiciário inibir-se e anular-se diante de uma injustiça. O modelo liberal de jurisdição está ultrapassado. Do império da lei passamos para o império do direito. Da função corretiva dos abusos de outros poderes ou de outros órgãos jurisdicionais o STF não pode jamais abrir mão, sob pena de não cumprir sua missão constitucional.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente da LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais  www.lfg.com.br)

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