Luiz Flávio Gomes

Brasil: copa, olimpíadas, corrupção e violência (pelo fim do “hands off”)

Quando é que os brasileiros vamos bradar por um basta à violação dos direitos humanos das vítimas (nas ruas e nas suas casas) e dos presos que, nos infestados presídios brasileiros, estão se transformando em vítimas do Estado brasileiro?

A pena de prisão é executada no Brasil de forma cruel e desumana (violando-se o art. 5.º, III, da CF, assim como incontáveis tratados de direitos humanos). Não contribui em absolutamente nada para a ressocialização do preso. As cadeias e penitenciárias são fontes de tortura, discriminação, tratamento desumano e degradante etc.

O Brasil é o quarto país do mundo no item “explosão carcerária”. No começo dos anos noventa, nosso país tinha a taxa de 60 presos para cada 100.000 habitantes; em 1999 esse número aumentou para 113; em 2001 chegou a 141 e 150 em 2002. No princípio de 2008 contávamos com 420 mil presos, a taxa subiu para perto de 230 presos para cada 100.000 habitantes. Em 2010 temos 470 mil presos para 194 milhões de brasileiros: 242 presos para cada 100.000 habitantes.

No início de 90 havia mais ou menos 90.000 presos; em 1999 eles totalizavam 195.000; em 2002 já passavam da casa dos 250.000 presos. Em princípio de 2008 chegamos a 420 mil. Em 2010 são 470 mil presos. Alcançamos já o quarto posto mundial em número de presos (cf. Julita Lemgruber, em Diário de Notícias de 29/11/07, p. 1). Nesse item, o Brasil só perde para EUA (cerca de 2,2 milhões), China (1,6 milhões) e Rússia (cerca de 0,7 milhão) (cf. World Prison Population List, do International Center for Prison Studies do King’s College de Londres www.kcl.ac.uk).

A capacidade prisional brasileira é de cerca de 300 mil presos. Nosso déficit prisional gira em torno de 170 vagas. Não tem onde enfiar presos e mensalmente são detidas cerca de 10 mil pessoas.

Tradicionalmente o Poder Jurídico brasileiro (do qual fazem parte o Judiciário e o Ministério Público), salvo algumas iniciativas louváveis, nunca enfrentou em sua raiz o problema carcerário. Sua clássica postura sempre foi a do “hands off” (lavar as mãos, não se intrometer, não interferir). Ou seja: vê, mas não enxerga! Escuta as críticas, mas não presta atenção! Sabe que tudo está errado, mas não atua. Sempre se mostrou conivente (criminosamente) com o Poder Executivo. É dessa forma que o Brasil está se candidatando para ser o país número um do mundo em violência e corrupção.

Nos Estados Unidos, nos anos 40, 50 e início dos 60, era (muito mais que hoje) deplorável e desumano o sistema penitenciário. Vigorava amplamente o regime legal de sentença indeterminada e, dessa forma, cabia às autoridades administrativas (“Adult Authority”) a delimitação do tempo de cumprimento da pena. A situação podia ser qualificada de profundamente ofensiva aos “direitos civis” dos presos, mas os juízes absolutamente nada faziam. Praticavam a denominada (e abominável) política do “hands off” (Não toque, não interfira; não é problema meu).

Por habeas-corpus o preso só podia discutir a legalidade da pena de prisão, nunca as condições e as deficiências do encarceramento. Falava-se em “morte civil” do preso porque ele não podia sequer discutir seus direitos constitucionais.

Nos anos 60 houve uma luta muito intensa em favor dos direitos civis nos Estados Unidos. No âmbito da execução penal o movimento postulava o fim das arbitrariedades e o direito ao castigo justo e civilizado (“the right of punishiment”). O resultado dessa reação popular foi a radical mudança de atitudes dos juízes e Tribunais, que passaram a exigir das autoridades prisões decentes e humanas (impondo multas diárias altíssimas em caso de descumprimento das decisões).

Entre nós, essa abominável política do “hands off” ainda está muito presente. Trata-se de política flagrantemente violadora dos Direitos (humanos) Fundamentais, mas interessante para muitos: ao Executivo, porque vai amontoando os presos de qualquer maneira; aos políticos, porque podem continuar com o, discurso da prisão ilimitada; a alguns juízes e membros do Ministério Público que se livram da responsabilidade de impedir os abusos, a tortura, o tratamento desumano e cruel.

Elogiáveis, nesse contexto, algumas decisões (corajosas) de juízes como Gerdinaldo Quixaba, juiz da Vara das Execuções de Tupã, e Cláudio Prado Amaral, juiz que atuou na 1.ª Vara das Execuções Criminais de São Paulo: ambos proibiram o aumento de presos nos presídios que se encontram sob suas jurisdições. Em caso de descumprimento da sentença, o diretor do presídio será processado criminalmente. Claro que a Corregedoria de Justiça viria, depois, tornar inválidos esses atos.

É preciso dar um basta a essa política de encarceramento massivo, que coloca o preso em situação degradante e torturante. Com certeza o Brasil vai ser condenado muitas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, por violação dos direitos básicos das pessoas. Um país que é conivente com a deplorável situação carcerária que vivemos não apresenta padrões internacionais de civilização.

Mas tudo tem seu preço: chegará o dia em que as organizações criminosas (que dominam os presídios) irão literalmente determinar a explosão total do sistema. Será o nosso tsunami, o nosso terremoto. Brasil é forte candidato a vivenciar a maior hecatombe de violência nos presídios. Milhares de presos morrerão. A repercussão será mundial. Órgãos internacionais condenarão duramente o país.

Apesar desse quadro muito preocupante, nossa jurisprudência continua reiterando sua clássica política do “hands off”. Vejamos: nos HCs 158.957, 159.079, 159.003 e 158.785, o STJ (decisão monocrática do seu presidente de 27/1/10) reiterou a referida política, que foi noticiada da seguinte maneira:

“O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Cesar Asfor Rocha, negou pedido da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul para que presidiários da comarca de Palmeira das Missões, no interior gaúcho, passassem a gozar do regime de prisão domiciliar devido “às péssimas condições dos presídios e do albergue local”.

“Os pedidos, individuais, buscavam o benefício em favor de Everton Fagundes de Oliveira, Loidemar Rupplo de Quadros, Claudir Antonio Rodrigues e Jorge Alberto Marques de Oliveira, que tiveram anteriormente o pleito negado pela Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS).

“Os mesmos pedidos de transformação de regime prisional já haviam sido apresentados ao Juízo da Vara de Execuções Criminais de Palmeira das Missões, que indeferiu por falta de amparo legal. O TJRS, por sua vez, negou provimento ao recurso justificando que o artigo 117 da Lei n. 7.210 é taxativo, não se enquadrando os presidiários citados em nenhum dos casos.

“Em relação ao paciente Everton Fagundes de Oliveira, a defensoria pediu, subsidiariamente, seja concedida transformação da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos, alegando o direito dos condenados a cumprirem penas em estabelecimentos adequados, “sob pena de ofensa aos princípios constitucionais da dignidade humana e da individualização da pena”.

“Para o presidente do STJ, não estão presentes no pedido de liminar os pressupostos necessários para o acatamento, assim como a demonstração concomitante do fumus boni iuris [fumaça do bom direito] e do periculum in mora [perigo da demora]. Cesar Rocha entendeu, ainda, que a questão é complexa e exige aprofundamento do exame do mérito, insuscetível de ser realizado em juízo singular.”

O preso brasileiro, de acordo com o pensamento escravagista e senzaleiro, é “mortável” (pode ser morto em qualquer momento, sem nenhum tipo de indignação). Conclusão: a maior parcela da população brasileira não está nem aí com a desgraça prisional que afeta, preferencialmente, os pobres. É dessa forma que o Brasil continua sendo um país pouco respeitado em termos de padrões civilizatórios. Castigo justo e civilizado: essa é a bandeira! Pelo fim ,da política do “hands off”!

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.blogdolfg.com.br

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