Boletim de Ocorrência para a realização do abortamento criminológico. Por quê?

O Ministério da Saúde editou uma norma na qual autoriza os médicos, da rede pública de saúde, a realizarem abortamentos em casos onde a gravidez é resultante de estupro sem a necessidade do registro da ocorrência criminosa (Boletim de Ocorrência – BO). Tal espécie de abortamento, chamado de criminológico, é uma das exceções, vigentes no Código Penal brasileiro, à regra geral da penalização da interrupção da gravidez.

Ocorre que, não obstante a `nova’ norma editada pelo Ministério da Saúde, tal espécie de abortamento nunca necessitou de apresentação de Boletim de Ocorrência para ser realizado. Discussões ético-religiosas postas de lado, ao se interpretar de uma maneira sistemática o ordenamento jurídico brasileiro relativo ao abortamento, é forçoso concluir que a informação oferecida à polícia sobre o crime contra a liberdade sexual da mulher é desnecessária para a realização da interrupção da gravidez. Vários são os motivos, mas o principal, e conclusivo, se baseia na espécie de ação penal que o nosso ordenamento prevê para o delito de abortamento.

As ações penais, em regra, são `públicas incondicionadas’, noutras palavras, na maioria dos crimes ocorridos no Brasil, as ações são iniciadas incondicionalmente à vontade das vítimas e possuem como titular o Estado, através do membro do Ministério Público. Esse é o caso dos crimes de homicídio, roubo, extorsão mediante seqüestro, entre outros.

Por outro lado, nosso ordenamento também prevê que determinados delitos fiquem adstritos, para a sua investigação, processamento e punição dos culpados, à movimentação realizada pela vítima, isto é, nos crimes em que as ações são `privadas’, a vítima, que é titular do direito decide; assim como no juízo cível; se inicia a ação contra o acusado, e mais, é ela quem promove todos os atos processuais pertencentes à acusação, funcionando o membro do Ministério Público apenas como `fiscal da lei’, sem ter qualquer domínio sobre a ação. Essa espécie de ação penal é utilizada em crimes como a calúnia, difamação, violação de direitos autorais e, principalmente, os crimes contra a liberdade sexual, dentre eles o estupro.

O fundamento para a existência dessa espécie de ação penal está na colisão entre o interesse coletivo em punir aqueles que atentaram contra a ordem social e o interesse individual da vítima em afastar a publicidade escandalosa que a divulgação processual acarretaria. No caso específico do estupro, o Estado permite a subordinação do interesse público ao interesse particular, evitando que novo e penoso sofrimento à vítima, a qual terá que reviver o fato criminoso e reencontrar o agressor, lese ainda mais seus valores íntimos. Entende-se que o ofendido pode até preferir amargar a sua dor silenciosamente, já que a divulgação e repercussão social poderiam lhe causar um dano maior que a impunidade do agressor.

No caso do abortamento criminológico, se o Estado realmente tornasse obrigatória a apresentação do Boletim de Ocorrências, o que daria ensejo à instauração de inquérito policial, estaria cerceando o direito da mulher, em prol de remover a imediata e imanente conseqüência do delito que foi vítima, em não reviver e divulgar o fato criminoso que sofreu, ou seja, estaria desconsiderando o fato de que a mulher grávida pode não querer participar criminalmente pela mesma razão que a leva a interromper a gravidez, que é o fato de não querer reviver ou carregar lembranças do delito que foi vítima.

Portanto, do ponto do vista jurídico, para que seja realizado o abortamento criminológico, basta à mulher declarar formalmente ao médico que aquela gravidez resulta de crime contra a sua liberdade sexual, assim, da mesma maneira em que a mulher não precisará optar por um entre seus direitos, também uma eventual responsabilização penal estará resguardada, pois, se a mulher ofereceu declaração falsa, será processada, não apenas pelo abortamento realizado, mas também pelos outros delitos cometidos.

Mário Elias Soltoski Júnior é advogado, professor universitário e mestrando em ciências jurídico-criminais na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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