Bioética, Biodireito e Direito Penal – Noções Introdutórias (I)

 

 

Artigo desenvolvido pelo grupo de pesquisa em Bioética e Direito Penal da Famec, sob orientação da Profª M. Ana Carolina Elaine dos Santos. Integrantes: Giovana de Mello Morillas, Sandra Cordeiro Bastos, Marcelo Schetz, Francielli Araújo Veiga, Genésio Aires de Siqueira, Diana Thais Fuchs e Marilda Lima.

 

Considerações iniciais

A evolução na área da biotecnologia traz inúmeras reflexões que estão diretamente relacionadas à área jurídica, principalmente no que toca ao Direito Civil, Constitucional e, inclusive, Penal. Assim sendo, partindo de uma linha histórica pretende-se, neste primeiro artigo, expor algumas considerações sobre o surgimento da bioética (I) para, posteriormente estabelecer sua relação com o biodireito (II) e, conseqüentemente, com o direito penal (III e IV).

A bioética surgiu como uma proposta de releitura dos princípios e regras da ética médica tendo em vista os novos desafios da evolução biotecnológica, como por exemplo, a reprodução assistida, transplantes de órgãos, clonagem humana e eutanásia. A ética médica tradicional, eminentemente restrita à normatização do exercício profissional, não estava preparada para reagir satisfatoriamente aos novos desafios, até porque os problemas surgidos transcendiam em muito à esfera ética profissional. Isto porque o aparato instrumental médico em desenvolvimento produz novas formas de se (re) pensar a vida sob outra (s) perspectiva (s): a de prolongar o seu curso. Logo, esta nova disciplina advinda da crise da ética médica tradicional parte em “busca do resgate da vulnerabilidade humana”[1] chamando a atenção para a necessidade de se estabelecer regras de caráter mais altruístas.

Assim sendo, o tema guarda íntima relação com a ética, conceituada como “um conhecimento racional que, a partir da análise de comportamentos concretos, se caracteriza pela preocupação em definir o bem, ou seja, a responsabilidade do homem para com seu semelhante”[2].

A ética tem por escopo primordial estabelecer limites para a convivência em grupo, através de regras gerais de conduta principalmente no que toca às “experiências envolvendo a criação de novas formas vida, a fim de que se evite desastres no equilíbrio biológico das espécies”[3].

Diante desta preocupação e, visando dar respostas aos problemas advindos, é que nasce a nova ética da vida, a bioética.

 

Breve histórico sobre o surgimento da bioética

Quanto ao surgimento da bioética, tem-se em Goldim[4] que seus fundamentos remetem à Alemanha de 1923, na pessoa do médico, teólogo e humanista, Albert Schweitzer, que discutiu a “sacralidade da vida em todas as suas dimensões”[5].

Porém, a terminologia foi utilizada pela primeira vez no artigo publicado no periódico alemão Kosmos, em 1927, escrito por Fritz Jahr que propôs o respeito a todo o ser vivo, devendo este ser tratado como um fim em si mesmo e, se possível, como tal[6]. Fritz Jahr deu especial ênfase à ética geral estabelecendo que as regras devessem ser aplicadas a qualquer relação vital como, por exemplo, a vida selvagem, da terra, das populações, de consumo e assim por diante. Houve neste ponto uma ampliação da discussão da ética, adquirindo um sentido ecológico.

Entretanto, grande parte da doutrina atribui a criação do termo à Van Rensselaer Potter, após o lançamento de seu livro Bioethics: bridge to the future[7]. Assim, na década de 1970, Van Potter, químico e farmacologista conceituou a bioética como uma “ponte entre a ciência e as humanidades”[8].

Com Potter, “a bioética torna-se uma ética do desenvolvimento das ciências médicas, isto é, medicina e ética tem em comum a pergunta que as motiva: a bioética”[9].

A bioética (re) nasce, então, com a tarefa de auxiliar o desenvolvimento médico científico amparado na dignidade da pessoa humana.

 

A bioética hoje

A bioética é entendida hoje como o “conjunto de pesquisas e práticas multidisciplinares, que tem por finalidade a resolução de conflitos éticos provocados pelos avanços biomédicos”[10].

Multidisciplinar a bioética possibilita a discussão das questões referentes aos avanços biotecnológicos e o homem em meio a toda essa transformação. Define-se hoje a bioética como “o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão, conduta e normas morais – das ciências da vida, num contexto multidisciplinar, por meio de uma variedade de critério éticos”[11].

Ela visa garantir a proteção dos seres humanos em face dos avanços científicos, ou seja, a reflexão a respeito da permissão para os estudos, a evolução tecnológica necessária para ter a possibilidade de novas descobertas desde que haja a proteção do homem, que deve ser o fim e não o meio para obter novas descobertas, respeitando sua dignidade pessoal da forma mais ampla possível.

  

Objetivos da bioética

O principal objetivo da bioética “é a busca de benefícios e a garantia da integridade do ser humano, tendo como fio condutor o princípio básico da defesa da dignidade da pessoa humana”[12].  Assim, a bioética representa a ligação entre os direitos do homem e a evolução científica.

            Diminui-se com a Bioética o poder que o paternalismo anteriormente tratado conferiu tradicionalmente ao médico, nascendo para o paciente o poder e o direito de participar das escolhas sobre o seu tratamento, de participar ou não de pesquisas científicas, de conhecer seus possíveis riscos e conseqüências. Nesse sentido, “a bioética denuncia ab initio o paternalismo médico com pacientes e reivindica sua substituição por uma relação profissional transparente e responsável. A nova disciplina surge e se afirma com respostas qualificadas frente ao conflito entre ética médica deontológica e as reivindicações dos cidadãos por maior transparência e responsabilidade pública a par das conquistas das ciências biológicas”[13].

Para Benatar[14], “esse poder se estendeu também a outros profissionais da saúde (…) o desafio da Bioética é descobrir formas de partilhar o poder de um modo capaz de otimizar as vantagens para o paciente e apoiar a integridade profissional”.

 

Princípios da bioética

Buscando aproximar a velocidade científica e o respeito ao ser humano, a bioética se vale de princípios gerais que definem, a um primeiro momento, condutas morais que devem ser obrigatoriamente respeitadas.

Inspirados no Relatório Belmont, Beauchamp e Childress publicam-se em 1979, os “Principles of Biomedical Ethics”: Autonomia e Beneficência de ordem teleológica e não-maleficência e justiça de ordem deontológica[15].

O princípio da autonomia fundamenta-se na dignidade da pessoa humana, a partir das idéias de Immanuel Kant e sua lógica deontológica e de Jhon Stuart Mill, expoente do utilitarismo britânico[16].

Myszczuk e Meirelles[17] conceituam três princípios, “in verbis”: “o princípio da autonomia ou autodeterminação da pessoa representa a capacidade que tem a racionalidade humana de fazer leis para si mesma e governar-se, ou seja, de escolher, dirimir e avaliar as situações sem quaisquer restrições internas ou externas. É a capacidade que o indivíduo possui de deliberar sobre determinada questão e de agir de acordo com sua escolha. Com o princípio da justiça obriga-se a distribuição justa, eqüitativa e universal dos benéficos do conhecimento. Pode-se analisar este princípio sob cinco fundamentos teóricos. O primeiro é o da proporcionalidade natural, na qual se entende que a justiça é uma propriedade natural das coisas, devendo o homem respeitar. A segunda é a da justiça como liberdade contratual, na qual se entende qual a justiça é uma condição basilar para que se possa garantir a fruição dos direitos civis e políticos, garantidos pelo contrato social. A terceira é a da justiça como igualdade social, introduzindo o princípio da justiça distributiva, ou de que devem ser distribuídos eqüitativamente os bens de consumo, de acordo com as necessidades do indivíduo. A quarta é a da justiça como bem estar social, onde o Estado deve garantir o direito à saúde para todos. A última teoria é a da justiça como eqüidade, que define como a distribuição igualitária de todas as oportunidades, liberdades e riquezas, tendo por base o respeito pelo ser humano, sendo justificada a distribuição desigual se esta redundar em benefício para todos ou, pelo menos, para os mais necessitados. O princípio da beneficência aborda a relevância social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos das pesquisas e minimização de ônus para os sujeitos vulneráveis, o que garante a igual consideração dos interesses envolvidos. Determina que o profissional jamais deva praticar algum mal ao seu paciente. É uma garantia de que os danos previsíveis serão evitados, que sejam atendidos os interesses importantes e legítimos do paciente, seu bem-estar”.

            A não-maleficência consolida o princípio da beneficência no sentido de minimizar os possíveis danos ao paciente, não lhe causando mal.

Piñeiro[18]afirma, por fim, que os princípios elencados no Relatório de Belmont são os de maior vulto, porém não os únicos. Assim, entende ser impossível restringir a estes três – autonomia, beneficência (e da não-maleficência) e justiça – “os princípios cardeais da bioética”. Servem ainda de orientação os princípios da Dignidade da Pessoa Humana e do consentimento esclarecido, oriundos dos princípios gerais.

 

 


[1]HECK, José. Bioética: contexto histórico, desafios e responsabilidade. Etic@: revista internacional de filosofia da moral. v.4. Florianópolis: 2005. p 123 -139

[2] SOARES, André Marcelo e PIÑERO, Walter Esteves. Bioética e biodireito: uma introdução. Rio de Janeiro: Loyola, 2002. p. 24.

[3] SILVA, Ivan de Oliveira. Biodireito, Bioética e Patrimônio Genético Brasileiro. São Paulo: Pillares, 2008.p. 64

[4] GOLDIM, José Roberto. Bioética Complexa: uma abordagem abrangente pra o processo de tomada de decisão. Revista da AMRIGS. Porto Alegre, 53 (1): 58-63, jan.-mar. 2009. p. 58

[5] Idem. p. 58

[6] Idem. p. 58

[7][7] ALMEIDA, Aline Mignon de. Bioética e Biodireito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000; MAGNO, A.; GUERRA, S.; MAGNO, Arthur; GUERRA, Silva. Bioética e Biodireito: uma introdução crítica. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005; NAMBA, Edison T. Manual de bioética e Biodireito. São Paulo: Atlas, 2009.

 

[8] NAMBA, Edison. T. Manual de Bioética e Biodireito. São Paulo, Atlas, 2009. p. 8

[9]HECK, José. Bioética: contexto histórico, desafios e responsabilidade. Etic@: revista internacional de filosofia da moral. v.4 Florianópolis: 2005. p 123 -139

[10] MYSZCZUK, Ana Paula; MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Bioética, Biodireito e Interpretação (Bio) Constitucional. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional de CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

[11] SILVA, Ivan de Oliveira. Biodireito, Bioética e Patrimônio Genético Brasileiro. São Paulo: Pillares, 2008. p. 65 (Nota: Encyclopedia of bioethics, 2ª ed. v. 1, introdução, p. XXI, W.T. Reich, ed. 1995 apud Barchifontaine & Pessini, 2000:32).

[12] SILVEIRA, Diva Lopes da; FERREIRA, Elvino; SOUZA JUNIOR, José Carlos de. Cenário Situacional da ética e da bioética. In: Ética e bioética na formação acadêmica: problema ou solução? Org. SILVEIRA, Diva Lopes da e FERREIRA, Elvino. Rio de Janeiro: E-paper, 2009. p. 40

[13] HECK, José. Bioética: contexto histórico, desafios e responsabilidade. Etic@: revista internacional de filosofia da moral. v.4 Florianópolis: 2005. p 123 -139

[14] BENATAR, Solomom R. In: Bioética: poder e injustiça. Org. GARRAFA, Volnei e PESSINI, Leo. São Paulo: Ed.Loyola, 2004.p. 26

[15] SOARES, Andre Marcelo M. e PIÑEIRO, Walter Esteves. Bioética e Biodireito – Uma introdução. São Paulo: Loyola, 2006. p. 32

[16] CLOTET, Joaquim; FEIJÓ, Anamaria e OLIVEIRA, Marília Gerhardt. Bioética uma visão panorâmica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005.

[17] MYSZCZUK, Ana Paula; MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Bioética, Biodireito e Interpretação (Bio) Constitucional. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional de CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

[18] PIÑEIRO, Walter Esteves. Cadernos Adenauer III (2002), nº 1 Bioética. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer. 2002, p. 113.

 

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