René Ariel Dotti

Athos Moraes de Castro Vellozo – Um mosqueteiro a serviço da boa Justiça

Em um de seus votos proferidos no Supremo Tribunal Federal, o sensível, talentoso e intimorato Ministro Marco Aurélio deplorou a “perda de parâmetros, de abandono de princípios, de inversão de valores”.

Tratava-se do julgamento do Agravo Regimental na Medida Cautelar em Mandado de Segurança n.º 28.1770 do Distrito Federal.

A Câmara dos Deputados desobedeceu a ordem expressa de remeter documentos relativos às despesas decorrentes de verbas indenizatórias pagas aos membros da Casa, escândalo que foi divulgado nacionalmente como “a farra das passagens aéreas”.

A empresa Folha da Manhã, que edita o jornal Folha de São Paulo, foi a impetrante do writ.

Estou lembrando esse trecho corajoso da alta jurisprudência ao redigir algumas notas da saudade de Athos Moraes de Castro Vellozo (30/04/1910 10/12/1991), meu professor, meu padrinho de casamento e meu amigo.

“They don’t die; they go before”. Ele também exercia a nobre missão de julgar com o destemor próprio dos grandes espíritos em busca da verdade e da justiça. Ele não passou pelo tribunal; o tribunal é que passou por ele. Na verdade, há determinadas pessoas que não morrem; apenas vão fisicamente antes de nós.

Em minha turma de Direito da Universidade Federal do Paraná (1954-1958), o Professor Athos Vellozo foi o assíduo, didático e competente mestre de Direito Processual Penal.

Suas lições prendiam a atenção dos alunos pelo empenho do ex-Promotor Público(1) que, sentimental também, lembrava a sua Tomazina, uma das primeiras comarcas por onde passou.

Ao contrário de muitos antigos e modernos “professores” que fingem ensinar para “alunos” que fingem aprender, o seu magistério era absolutamente fiel às convicções legais e jurídicas de seu tempo e responsável para a boa formação dos futuros profissionais do Direito e da Justiça.

O seu rigor didático foi uma das raras vezes desafiado quando um colega habitual nas exóticas indagações aos palestrantes e conferencistas questionou a validade da citação por hora certa, tema de uma das aulas.

Embora houvesse a explicação clara sobre a natureza, as circunstâncias de utilização e a importância desse procedimento, o estudante, para surpresa geral, aparteou o mestre e protestou: “Citação, com hora certa? Se o nosso país tivesse um Big Ben como existe em Londres, tudo bem. Mas com o tamanho do Brasil e as diferenças dos fusos horários, isso não é possível”.

E com a audácia dos néscios, arrematou: “Data venia, eu entendo que esta é uma questão de alta indagação!” Numa espécie de bate-pronto (outra virtude do Athos, tenista), veio a resposta precisa e a advertência oportuna: “Alta indagação o senhor vai ver na segunda época se não estudar”.

Ele era assim mesmo. Vigoroso em suas convicções, correto nas lições e sincero nas relações com a mocidade, colegas de trabalho, com os amigos e os cidadãos em geral.

A austeridade, revelada em alguns momentos na defesa de um ponto de vista ou argumento, não escondia a ternura da boa alma e o amor às virtudes humanas. O professor exemplar era obstinado no cumprimento dos princípios clássicos atribuídos a Ulpiano (170-228) e que desde o início do curso nos foram transmitidos: Alterun non laedere, honeste vivere e suum cuique tribuere(2).

O seu empenho didático e a sua responsabilidade docente refletiam um notável conjunto de catedráticos da mais antiga universidade brasileira. Em 1962, quando comecei a lecionar Direito Penal, pelo bondoso e inesquecível convite do Professor Ildefonso Marques, diretor da Faculdade, recebi lições de Direito, do homem e da vida com Omar Gonçalves da Motta (Direito do Trabalho), Carlos Araújo de Brito Pereira (Direito Comercial), Laertes de Macedo Munhoz (Direito Penal), Ernani Guarita Cartaxo (Direito Romano), Manoel de Oliveira Franco Sobrinho (Direito Administrativo), Oscar Martins Gomes (Direito Internacional Privado), Altino Portugal Soares Pereira (Direito Civil); Napoleão Lyrio Teixeira (Medicina Legal), João Alves da Rocha Loures (Ciências das Finanças), José Nicolau dos Santos (Teoria Geral do Estado), Nelson Ferreira da Luz ,(Direito Internacional Público), Humberto Grande (Introdução à Ciência do Direito), José Rodrigues Vieira Neto (Direito Civil), Ary Florêncio Guimarães (Direito Judiciário Civil)(3) e Egas Dirceu Moniz de Aragão (Direito Judiciário Civil).

Ginasiano pelo Colégio Paranaense, Bacharel em Direito da UFPR (1932), Promotor Público das comarcas de Jataizinho, Tomazina e Palmeira, o sub-Procurador Geral da Justiça foi nomeado Desembargador do Tribunal de Justiça, pelo Governador Paulo Cruz Pimentel, órgão onde exerceu os cargos de vice-presidente e Corregedor-Geral.

Em sua judicatura criminal Athos Vellozo se destacou entre seus pares pelo fiel e intimorato cumprimento da Constituição e dos princípios inerentes ao devido processo legal.

Um destaque especial merece a sua gestão na presidência da OAB-PR, depois da aposentadoria no Ministério Público e antes de chegar ao Tribunal. Intercedendo em favor de defensores de presos políticos, impedidos pelo encarregado de um Inquérito Policial Militar (IPM) de se entrevistarem pessoal e reservadamente com os clientes, o Professor Athos levou a diretoria da OAB à presença do General-Comandante da Região.

Em manifestação respeitosa e sem perder o vigor das palavras, ele fez a leitura do dispositivo do Estatuto da OAB (então a Lei n.º 4.215/63), garantindo ao advogado esse elementar direito funcional.

E o militar de maior posto, fiel ao juramento de cumprir a Constituição e a lei, acolheu a reclamação e ordenou ao inferior hierárquico que permitisse as entrevistas.

Homenageado pelas comarcas por onde atuou, catedrático por concurso público de provas e títulos, professor do Curso de Doutorado, autor de vários textos jurídicos e participante ativo de congressos e demais eventos acadêmicos, o meu saudoso mestre e amigo honrava o sentido de seus prenomes da melhor tradição romana: Atos (atus = ação) Moraes (mores = costumes), ou sejam as ações praticadas pelos seres de livre arbítrio.

A vida e a obra de Athos Moraes de Castro Vellozo teve a generosa inspiração de seu venerado e venerável progenitor, Dario Vellozo, um dos ícones da melhor História do Paraná.

O mestre que transitou entre o Positivismo e o Simbolismo, batizou os filhos com os nomes dos personagens do romance histórico de Alexandre Dumas, pai (1802-1870): Athos, Porthos e Aramis, que juntos combateram grandes combates para tentar provar a realidade de alguns mitos essenciais à segurança, à justiça, à felicidade e à alegria.

“Um por todos e todos por um” ou “todos por um e um por todos”, no texto original, é a reencarnação do mais puro sentimento de solidariedade. Stela e Aldo, a querida filha e o genro afetuoso também amigos lembraram-me do centenário de nascimento.

A partir de então comecei a refletir sobre a vida depois da morte. E como é maravilhosa a esperança ou a simples crença de alguém poder, algum dia, em algum lugar, falar com quem já partiu.

Notas:

(1) Antiga designação do atual Promotor de Justiça em primeiro grau de jurisdição.
(2) Não lesar os outros, viver honestamente e dar a cada um o que é seu (Digesto, 1,10,1).
(3) Designação original da disciplina, cf. a relação do corpo docente do ano de 1962 (Revista da Faculdade de Direito, Curitiba: Impressora da UFP, n.º 9 (1961-1963), p. 5.

René Ariel Dotti, Advogado, Professor Universitário e membro da Academia Paranaense de Letras.

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