Aspectos inovadores da Propriedade no Novo Código Civil (III-V)

Caio Mário da Silva Pereira entende que elas são inconstitucionais, pois a desapropriação é matéria constitucional, não cabendo ao legislador ordinário prever hipótese não admitida pela Constituição(25). É inconstitucional, ainda, pois tal forma de desapropriação não prevê “prévia indenização”(26) e não define quem deverá pagar a indenização, não sendo razoável condenar o Estado, quando não integra a relação processual. Ademais, é inconveniente, na medida em que não se submete ao controle do Executivo e do Legislativo, devendo ser apreciada, exclusivamente, pelo juiz, a quem não cabe traçar as linhas de orientação econômica do governo, dando margem ao subjetivismo e ao arbítrio judiciais(27).

Do mesmo modo, Carlos Alberto Dabus Maluf sustenta que as regras contidas nos parágrafos 4.º e 5.º do artigo 1.228 do NCC violam o direito de propriedade, incentivando a invasão de glebas urbanas e rurais e, por isto, sendo inconstitucionais(28).

Miguel Reale, por outro lado, defendeu a constitucionalidade do instituto, assemelhendo-o às hipóteses de “desapropriação indireta”, nas quais o proprietário, ilegitimamente privado do imóvel, sem prévio ato expropriatório por parte do Executivo, não recupera a coisa, mas nem por isso deixa de receber o justo preço que lhe cabe, por ser a questão decidida pelo Judiciário(29).

Desta forma, procurou dar uma solução social ao problema das favelas que se formaram nos grandes e médios centros urbanos, já que não seria razoável, ao final das ações reivindicatórias ajuizadas pelos legítimos proprietários, em face daqueles que ocupam a área, expulsar os possuidores de boa-fé, para tutelar o vencedor da demanda. Ao invés de determinar a devolução do imóvel, o seu proprietário teria direito ao seu justo preço. Feito o pagamento, pelos possuidores (ou, depois de comprovada impossibilidade, pelo Estado), o magistrado proferirá sentença que valerá para a transcrição do imóvel em nome de cada um deles. Na sentença, por aplicação analógica dos parágrafos 3.º e 4.º da Lei 10.257/2001, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo na hipótese de acordo escrito entre os proprietários, estabelecendo frações ideais diferenciadas (condomínio especial indivisível), que somente será extindo pela deliberação favorável de, no mínimo, 2/3 (dois terços) dos condôminos, na hipótese de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio. Com efeito, poder-se-ia dar um sentido concreto à função social da propriedade(30).

O Projeto n.º 6.960/2002, de modificação do NCC, do Deputado Ricardo Fiuza, acolhendo parcela da crítica de Carlos Alberto Dabus Maluf, propõe a alteração da segunda parte do parágrafo 5o do artigo 1.228, com o intuito de evitar que tal dispositivo sirva de incentivo à invasão de glebas urbanas e rurais, bem como que aquele que perde o direito de propriedade sofra danos e deixe de receber uma indenização justa. Sugere que o preceito passe a ter a seguinte redação: “No parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago integralmente o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome do respectivo possuidor”.

Ainda, os dispositivos constantes nos parágrafos 4.o e 5.o do artigo 1.228 do NCC, apesar da ausência de ressalva nos dispositivos, não se aplicam ao Poder Público, por trazerem injustificáveis limitações ao instituto da desapropriação, tais como a existência de ocupação por mais de cinco anos, a existência de um número considerável de pessoas bem como de obras e serviços considerados, pelo juiz, de interesse social e econômico relevante, já que o Executivo não se submete ao juízo de conveniência e oportunidade prévios do magistrado.

Por último, em razão da supressão da exceção de domínio do nosso ordenamento jurídico (art. 1.210, par. 2.º, NCC), se o titular do direito de propriedade ajuizar ação de reintegração de posse, a defesa, fundada no direito de aquisição com base no interesse social (art. 1.228, par. 4o e 5.o, NCC), por estar calcada no domínio, deverá ser argüida mediante ação publiciana (que é tem por objetivo a posse, com fundamento no “domínio de fato”, adquirido pela usucapião, mas ainda não declarado por sentença judicial(31). Trata-se de ação dominial e não ação possessória, pois a causa de pedir é a propriedade, adquirida pela usucapião, ainda não reconhecida judicialmente. Entretanto, tal ação não poderá ser ajuizada simultaneamente à ação possessória, ficando sustada, temporariamente, a tutela jurisdicional a ser exercida por meio da ação publiciana. Em contrapartida, se houver o ajuizamento de ação reivindicatória, a usucapião especial poderá ser invocada como matéria de defesa e reconhecida a prescrição aquisitiva, valendo a sentença como título para a transcrição no Registro de Imóveis(32), conforme assevera o artigo 13 do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001)(33). Por fim, as ações de usucapião especial seguem o procedimento sumário (arts. 275, inc. II, “g”, CPC e 14 da Lei 10.257/2001).

NOTAS

(25) Cfr. Crítica ao anteprojeto de Código Civil. Revista Forense, vol. 242, abril-maio-junho/1973, pág. 21-2.

(26) A CF/88 prevê três modalidades de desapropriação, as quais podem se realizar por necessidade pública, utilidade pública e interesse social (arts. 5.o, inc. XXIV, 182 e 184 da CF). Todas estas três espécies serão feitas mediante prévia e justa indenização, devendo as duas primeiras se dar em dinheiro (onde se inclui a desapropriação de imóveis urbanos; art. 182, par. 3.o, CF; apesar disto, o imóvel urbano não integrante do plano diretor pode ser desapropriado com pagamento mediante títulos da dívida pública, de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e juros legais; art. 182, par. 4.o, inc. III, CF), e a última se dar em títulos da dívida agrária (onde se inclui a hipótese da desapropriação do imóvel rural, para fins de reforma agrária; art. 184, caput, CF).

(27) “O juiz, no seu exclusivo arbítrio, é que entenderá qual o número de invasores a se reputar `considerável’: um exige que orcem por centenas, outro poderá contentar-se com meia dúzia. O juiz, como senhor absoluto, terá a faculdade de entender como extensa área a que se mede por alguns alqueires, ou traduzir como tal a que se limita a algumas centenas de metros. E finalmente, é do arbítrio do juiz considerar como de relevante interesse social e econômico a construção de alguns barracos, o plantio de algumas árvores ou a urbanização de toda a área. Subjetivismo, subjetivismo, subjetivismo, – confirmando o conceito de má para a lei que o cultiva e o estimula” (Caio Mário da Silva Pereira. Crítica ao anteprojeto de Código Civil. Cit. Pág. 22).

(28) Cfr. Informativo INCIJUR, vol. 38, setembro 2002, pág. 12.

(29) Cfr. Jackon Rocha Guimarães. O novo Código Civil e o Direito das Coisas. Revista dos tribunais, vol. 798. Abril/2002. Pág. 56.

(30) “Ainda há poucos anos houve aqui na Ilha de Santo Amaro, na Ilha de Guarujá-Piaçagüera, um fato muito conhecido: houve uma decisão de uma demanda de uma ação reivindicatória que chegou ao seu fim dezenas de dezenas de anos após a sua propositura, de maneira que nesse intermédio aquela área foi toda ela sendo parcelada e dividida, transformando-se ou em domínio aparente ou posse de uma multiplicidade de indivíduos e de famílias. Ora , nada mais absurdo do que, diante de uma situação como essa, fazer com que a propriedade seja devolvida ao autor da demanda. Então nós avançamos um pouco nossa matéria, com grande escândalo para certos conservadores à outrance, reconhecendo que em tais casos, em se tratando de grandes áreas ocupadas por um grande número de possuidores, o juiz poderá determinar que ao invés da devolução da coisa quem venceu a demanda receba o justo preço do imóvel, sem levar em conta as benfeitorias, que são produto do trabalho alheio. Feito o pagamento do justo preço pelos possuidores, o juiz dará a sentença que valerá para transcrição do imóvel em nome de cada um deles. É um exemplo típico no qual está expressa mais uma vez a necessidade de um sentido social à propriedade” (Miguel Reale. O Projeto de Código Civil. Situação atual e seu problemas fundamentais. Cit. Pág. 54).

(31) Transcorrido o prazo legal, aquele que possui com animus de proprietário adquire a “propriedade de fato”, necessitando ajuizar ação de usucapião, para obter título indispensável à transcrição no registro de imóvel. A sentença, contudo, na ação de usucapião, é declaratória, não constitutiva, operando efeitos retroativo (ex tunc).

(32) Esta prerrogativa somente existe no Estatuto da Cidade e na Lei 6.969/81 (art. 1.º), que disciplina o usucapião especial; nas demais hipóteses de usucapião, alegadas como defesa, a sentença não serve de título para a transcrição no Registro de Imóveis, sendo indispensável à propositura da ação (declaratória) de usucapião.

(33) “A usucapião especial de imóvel urbano poderá ser invocada como matéria de defesa, valendo a sentença que a reconhecer como título para registro no cartório de registro de imóveis”.

Eduardo Cambi

é mestre e doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professor de Direito Processual Civil da PUC PR e dos cursos de mestrado da Unespar e da Unisul. Assessor jurídico do TJ/PR.

ERRATA (NE)

Na parte (II) do presente artigo publicado no último domingo, dia 15/6/03, págs. 8 e 9, as notas de rodapé ficaram confusas. Onde se lê: *IPTU de Porto Alegre. … leia-se (17) IPTU de Porto Alegre… Onde se lê: nota (17), leia-se (18); (18) leia-se (19); (19) leia-se (20); (20) leia-se (21); (21) leia-se (22); (22) leia-se (23); (23) leia-se (24).

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