Festival de Curitiba

As três nômades

Em “Mil Platôs”, os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari descrevem o nômade como um indivíduo que não sai definitivamente do deserto, mas deixa o local quando imagina que neste lugar não é mais possível viver.

Essa transição de espaço (territorialidade) é fonte de inspiração para o diretor e um dos escritores da peça “Nômades”, estrelada pelas atrizes Andréa Beltrão, Mariana Lima e Mallu Galli cuja apresentação aconteceu nos dias 03 e 04 de abril, no Teatro Guaíra e integrou a programação do 24ª Festival de Teatro de Curitiba.

A morte e o luto são temas centrais da peça. Porém, o festejo da vida entra em discussão principalmente ao valoriza-la diante do suicídio de uma amiga das três atrizes.

Para tentar tornar a vida mais interessante, a atriz Andréa Beltrão, em cena, se apoia na teatralidade, de como o ser humano a utiliza para dramatizar, ironizar e espetacularizar sua rotina fugindo da mesmice e da monotonia. “Se minha vida é miserável, então vou torna-la mais interessante”, interpreta Andréa.

Mas “Nômades” não transita apenas sobre a vida e morte. O espetáculo é uma metalinguagem sobre o teatro, a fama e os bastidores dos artistas. Nenhuma personagem apresenta um nome na história e algumas discussões sobre inúmeros temas possibilitam compreender que tal interpretação pertence à atriz que fala.

Mallu Galli, por exemplo, reclama do cansaço e dos inúmeros afazeres do cotidiano. Sem caracterização de uma personagem específica, os anseios parecem pertencer à própria Mallu.

Outro exemplo de metalinguagem é a cena satírica de uma entrevista televisa sobre o surgimento da peça e a produção do projeto. As três atrizes ironizam as incansáveis entrevistas de que estamos acostumados a ver ao repetir perguntas do tipo: “Você se identifica com a personagem?” “Qual a expectativa da peça?” “Você acha que será um sucesso?”.

Andréa Beltrão, a entrevistada, responde automaticamente todas as questões, como se fosse uma máquina pronta para repetir aquilo que já estava acostumada a fazer quando ia a um talk show divulgar seus outros trabalhos.

A transição de territórios, discutido por Deleuze e Guattari, não está só nessa passagem de vida e morte, no caso da peça. Ao encarnar cantores como Amy Winehouse, Donna Summer e Robert Smith (vocalista do The Cure), Andréa, Mariana e Mallu também transitam em vários corpos em busca da essência do artista (desterritorilização). 

Ao dublarem os músicos, as atrizes vão se deslocando sempre em busca do outro – principal missão de um ator. Quanto à expectativa do público, a ânsia principal era ver a atriz Andréa.

A psicóloga Anna Eduarda, por exemplo, escolheu o espetáculo esperando assistir à Andréa da série Tapas e Beijos (exibida pela Rede Globo), mas ao término da peça, Eduarda comentou, negativamente, esperar um texto mais cômico e semelhante ao programa global. Já a professora Kelly Gerinásio se surpreendeu com a atuação leve das três atrizes, pois esperou por algo mais dramático.

Dramaturgicamente, “Nômades” pareceu confuso. A peça foi escrita por Márcio Abreu e Patrick Pessoa e teve a colaboração das três atrizes e de Newton Moreno. Cada um procurou integrar vários temas num único texto e aproveitou a estrutura do filme “Os Maridos”, de John Cassevetes, para manter uma linha de raciocínio.

Talvez a ideia central do suicídio da atriz nem havia surgido no início do projeto e foi utilizada como aglutinador dos inúmeros assuntos discutidos na peça. O público que não se ateve à ideia de nômade de Deleuze e Guattari achou gratuitas ou desnecessárias todas as dublagens dos cantores.

Mas o espet&aa,cute;culo se manteve firme com a atuação discrepante das atrizes que ia do drama profundo sobre a perda de um ente querido à comédia escrachada sobre a superação do trauma e a ridicularizarão da fama.