As áreas de reserva legal e a de reflorestamento pelo novo adquirente

A legislação brasileira contém espaço de destaque para as florestas. Além dos aspectos místicos que sempre despertaram na humanidade, rendendo ensejo a inúmeros contos e lendas, as florestas prestam inestimável valor para a manutenção do equilíbrio ecológico. Atuam na preservação do ciclo hidrológico; da biodiversidade, como também constituem elemento primordial na contenção do efeito estufa, mormente pelo seqüestro de carbono que realizam no processo de fotossíntese.

Não obstante a isso, as florestas pelo mundo afora, inclusive no Brasil, foram objeto de espoliação extrativista aleatória por parte do homem. Cite-se, por exemplo, a Mata Atlântica, cuja cobertura florestal atual equivale a 7% do original.(1) O próprio nome “Brasil” decorre dessa política predatória desenfreada em relação à madeira conhecida como “pau-brasil”. É por estas e outras circunstâncias que o legislador reserva especial atenção às florestas no Direito Ambiental, como é o caso das “reservas legais”.

Inicialmente, cumpre destacar que as reservas florestais não se confundem com as “áreas de preservação permanente”. Estas últimas estão previstas nos artigos 2.º e 3.º do Código Florestal, regulado pela Lei n.º 4.717, de 15 de setembro de 1965. Aquelas estão previstas no artigo 16 do mesmo diploma.

Dentre as áreas de preservação permanente encontram-se as matas ciliares, consistentes na vegetação que deve existir às margens de rios e cursos d’água, cuja metragem varia conforme a dimensão destes (art. 2.º). Também são consideradas áreas de preservação permanente, quando assim declaradas por ato do Poder Público, as florestas e demais formas de vegetação natural destinadas a atenuar a erosão das terras, a fixar as dunas, a formar faixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias, a auxiliar a defesa do território nacional a critério das autoridades militares, a proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico ou histórico, a asilar exemplares da fauna ou flora ameaçados de extinção, a manter o ambiente necessário à vida das populações silvícolas, e a assegurar condições de bem-estar público (art. 3.º).

As “reservas legais”, por sua vez, conforme previsto nos artigos 16 e 44 do Código Florestal, correspondem àquelas porções de florestas, existentes em cada propriedade rural, cuja exploração ou supressão é de uso vedado. Não há um percentual único no Brasil para fins de reserva legal. Este percentual varia conforme a região em que se situa o imóvel rural. Assim, se o imóvel localizar-se na Amazônia Legal, a reserva florestal corresponderá a 80% da propriedade. Será, todavia, de 35% na propriedade rural situada em área de Cerrado. Será de 20% na propriedade rural situada em área de floresta ou outras formas de vegetação nativa localizada nas demais regiões do País. Será também de 20% na propriedade rural em área de campos gerais localizada em qualquer região do País (art. 16).

No plano negocial, a questão referente a obrigação das reservas legais tem sido objeto de controvérsias. Dúvidas não existem quanto a sua obrigatoriedade em si, mesmo porque se trata de obrigação ex lege,(2) o que não suscita maiores digressões. O que tem despertado discussões diz respeito à obrigatoriedade de sua implantação quando o novo proprietário já adquiriu o imóvel rural em desacordo com as normas do Código Florestal. Quando já adquiriu o imóvel desprovido, total ou parcialmente, das áreas de reserva legal.

No Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, encontram-se duas posições diametralmente opostas. A primeira delas trilha pela conclusão de se negar esse dever de reflorestar ao novo proprietário. Assim, a ementa abaixo:

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. “Dano ao Meio Ambiente. Aquisição de terra desmatada. Reflorestamento. Responsabilidade. Ausência. Nexo causal. Demonstração. Não se pode impor a obrigação de reparar dano ambiental, através de restauração de cobertura arbórea, a particular que adquiriu a terra já desmatada. O art. 99 da Lei 8.171/91 é inaplicável, visto inexistir órgão gestor a que faz referência. O art. 18 da Lei 4.771/65 não obriga o proprietário a florestar ou reflorestar suas terras sem prévia delimitação da área pelo Poder Público. Embora independa de culpa, a responsabilidade do poluidor por danos ambientais necessita da demonstração do nexo causal entre a conduta e o dano”. REsp. n. 214.714. Relator: Min. Garcia Vieira. Brasília. 17 de agosto de 1999. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, ano 5, n.º 19, p. 327-329, jul./set. 2000.

A segunda corrente, também presente no Superior Tribunal de Justiça, entende que há o dever de reflorestar nessas ocasiões. Observe-se:

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. “Reserva Florestal. Novo proprietário. Legitimidade passiva para responder por dano ambiental. 1. O novo adquirente do imóvel é parte legítima passiva para responder por ação de dano ambiental, pois assume a propriedade do bem rural com a imposição das limitações ditadas pela Lei Federal. 2. Cabe analisar, no curso da lide, os limites de sua responsabilidade. 3. Recurso Provido.” REsp n.º 222.349. Relator: Min. José Delgado. Brasília. 23 de março de 2000. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, ano 6, n.º 21, p. 300-302, jan./mar 2001.

Apesar do quadro divergente, crê-se que a matéria não encerra tamanha polêmica, exceto pela postura deliberada de segmentos ligados ao poder econômico em não cumprir a lei. Vale ressaltar que está havendo, data venia, equívoco na forma de se interpretar a norma ambiental por parte dos julgados que não reconhecem a obrigação de reflorestar ou florestar por parte do novo proprietário. Trata-se de interpretação, excessivamente, apegada a uma orientação privatística que se revela inadequada, insuficiente e já superada, sobretudo por desconsiderar a função social e ambiental da propriedade ao dirimir a controvérsia.

O primeiro aspecto que merece destaque, no caso em exame, refere-se à natureza do bem ambiental. Quando se depara com o bem ambiental não se está diante de um bem jurídico qualquer. Está-se diante de um relevante bem jurídico; de um bem jurídico de “uso comum do povo”; indisponível e que não permite transação, exceto para sua integral tutela. Trata-se, portanto, de um bem jurídico singular, de onde promana e se mantém o suporte necessário à manutenção de vida na terra, inclusive vida humana. A finalidade de proteção ao meio ambiente não se restringe à proteção de bens patrimoniais ou efêmeros. A finalidade de proteção ao bem ambiental decorre da indispensabilidade da preservação do equilíbrio ecológico, elemento e pressuposto indestituível à perpetuação de todas as formas de vida. Por isso, a interpretação da norma ambiental deve ser compatível com o valor que representa. O foco de proteção em casos dessa envergadura é a vida. E mais: a vida intergeracional – para as presentes e futuras gerações (CF, art. 225, caput) -. Portanto, a interpretação deve consoar com os valores que lhe são correlatos.

Além disso, como emerge das claras letras do artigo 225, § 3.º, da Constituição Federal, combinado com artigo 14, § único, da Lei n.º 6.938, de 31 de agosto de 1981, a responsabilidade por danos ambientais é objetiva. Prescinde-se do elemento culpa em sua investigação. De outra banda, a obrigação de manter e, se for o caso, restabelecer a reserva legal decorre de imperativo de lei, como seu próprio nome demonstra: “reserva legal”. Lei que incide, reflete e adere aos imóveis rurais independentemente da vontade do particular. Denota, pois, uma autêntica limitação ao direito de propriedade em perfeita harmonia com o que estabelece o artigo 5.º, inciso XXIII,(3) e o artigo 186, inciso II,(4) da Lex Magna, os quais preconizam a função social da propriedade rural.

A reserva legal consiste, pois, em obrigação propter rem, gravando o bem respectivo independentemente da adesão voluntária do(s) proprietário(s). Proprietário – destaque-se – que somente tem o direito de propriedade sobre o bem imóvel rural, se cumprir sua função social. Por outras palavras: desde que cumpra sua função social e ambiental, dentre as quais se insere a incolumidade, a intangibilidade das reservas legais, consoante disposições do Código Florestal.

Frise-se que a temática da Lei n.º 6.938, de 31 de agosto de 1981, considera poluidor “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental” (art. 3, inciso IV), de maneira que a exclusão do novo proprietário da obrigação em relação à reserva legal colide frontalmente com a regra de solidariedade inerente à matéria.

Perfilha desse mesmo entendimento, Luís Henrique Paccagnella:

“Há de se destacar que o eventual fato da aquisição do domínio e posse do imóvel rural, quando já não mais havia parte da cobertura vegetal na propriedade, não afasta a responsabilidade do adquirente. É que, além de tal responsabilidade ser objetiva e solidária, ela consubstancia uma obrigação real – propter rem – ou seja, uma obrigação que se prende ao titular do direito real, seja ele quem for, em virtude, tão-somente, de sua condição de proprietário ou possuidor”. (5)

Note-se que sequer pode o novo proprietário alegar desconhecimento de lei, ex vi do disposto no artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil.(6) Averbe-se, outrossim, que a regra do artigo 99 da Lei n.º 8.171, de 17 de janeiro de 1991,(7) apenas ratifica a natureza jurídica da reserva legal como obrigação propter rem, afastando, por mais esse motivo, dúvidas acerca do dever imposto ao novo proprietário.

A desnecessidade de regulamentação dos artigos retro é extraída tanto dos argumentos já expendidos, como da clareza meridiana dos dispositivos que regulam a matéria. Desnecessária qualquer complementação e/ou outros esclarecimentos para se cumprir a lei nesse particular.

A propósito, traz-se à colação as palavras de Paulo Affonso Leme Machado: “A lei federal não foi expressa em exigir que a área destinada à Reserva Florestal legal fosse medida, demarcada e delimitada. A lógica das coisas nos mostra que essas atividades estão automaticamente inseridas na instituição da reserva, em que se aponta um percentual da área total do imóvel rural, e no ato de averbar no Registro de Imóveis. Indiscutivelmente obrigatórias essas operações, inclusive, através de ações judiciais.”(8)

Comungando exatamente do raciocínio aqui apresentado, está o julgado abaixo, da lavra do Tribunal de Justiça do Paraná:

BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. “AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR DANOS AO MEIO AMBIENTE COM OBRIGAÇÃO DE FAZER RESERVA LEGAL DE FLORESTAS – POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO – ARTIGOS 16, § 2.º E 26, G DO CÓDIGO FLORESTAL (LEI N.º 4.771/65); ARTIGO 99 DA LEI Nº 8.171/91; ARTIGO 14, § 1.º DA LEI N.º 6.938/81 E ARTIGO 225, § 3.º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – PRÉVIA DEMARCAÇÃO DA ÁREA – DESNECESSIDADE – Se a Lei Federal não determina que a área destinada à reserva florestal seja medida e demarcada, não é necessário que a inicial da ação civil pública, para obrigar o proprietário a refazer a reserva legal de florestas, contenha a descrição da área desmatada e a ser regenerada. Apelação provida.” Ac. n.º 0056380-2. Relator: Des. Ivan Bortoleto. Curitiba. 21 de fevereiro de 2000. Diário de Justiça do Paraná

Não há que se argumentar, também, pela prescrição da obrigação de se estabelecer as reservas legais. O fato do atual Código Florestal datar de 15 de setembro de 1965 é absolutamente irrelevante para se fundamentar essa tese. Primeiro porque predomina, na doutrina, o entendimento de que os danos ambientais são imprescritíveis.(9) Segundo porque a lesão ao bem ambiental, no caso, está em pleno transcurso, está ocorrendo. Não há sequer em início de prazo prescricional, portanto.

Em suma, o valor e a supremacia do bem ambiental – bem indisponível por excelência – sobrepõem-se aos demais valores em conflito. Ademais, a taxatividade das disposições legais sobre a matéria, em perfeita harmonia com a função social e ambiental da propriedade rural, não autorizam conclusões distorcidas acerca do tema.

Enfim, por todos os ângulos que se analise a questão, não há como isentar o novo proprietário de cumprir as disposições do Código Florestal, no que tange a reserva florestal, sobretudo porque se trata de obrigação propter rem.

Notas

(1) Revista Superinteressante. Edição Especial: Ecologia. p. 11, dez. 2001.

(2) Nesse sentido, Narciso Orlandi Neto: “Como a reserva é legal, isto é, decorre de lei, que impõe genericamente a todos os imóveis situados em determinadas regiões, nem mesmo a publicidade do Registro é essencial à sua existência.” ORLANDI NETO, Narciso. As Reservas Particulares e Legais do Código Florestal e sua Averbação no Registro de Imóveis. In: Vladimir Passos de Freitas (Coord.). Direito Ambiental em Evolução. Curitiba: Juruá, 1998, p. 186-218.

(3) \”Art. 5.º…Omissis… (…) XIII – A propriedade atenderá a sua função social”.

(4) “Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: (…) II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;”

(5) PACCAGNELLA, Luiz Henrique. Função socioambiental da Propriedade Rural e Áreas de Preservação Permanente e Reserva Florestal Legal. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, ano 2 ,v. 8., p. 5-19, out./dez. 1997.

(6) “Art. 3.º Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.”

(7) “Art. 99. A partir do ano seguinte ao de promulgação desta lei, obriga-se o proprietário rural, quando for o caso, a recompor em sua propriedade a Reserva Florestal Legal, prevista na Lei n.º 4.771, de 1965, com a nova redação dada pela Lei n.º 7.803, de 1989, mediante o plantio, em cada ano, de pelo menos um trinta avos da área total para complementar a referida Reserva Florestal Legal”

(8) MACHADO. Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 8. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 705.

(9) NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria B.B de Andrade. Responsabilidade Civil, Meio Ambiente e Ação Coletiva Ambiental. In: BENJAMIN, Antônio Herman V. (Coord.). Dano Ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.

José Ricardo Alvarez Vianna

é juiz de Direito do Paraná e mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina – UEL.e-mail:
jricardo@sercomtel.com.br.

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