Ariano Quaderna, o rei do Brasil

Na sexta-feira anterior ao carnaval, num início de tarde marcado por uma garoa que poderia ser mau augúrio para o restante do feriadão, fui à Boca com a intenção de comprar a Gazeta Mercantil por causa do caderno Fim de Semana. Depois de examinar os dois ou três exemplares disponíveis na banca, verifiquei que não havia o suplemento em nenhum deles. Estranhei, pois a indefectível chamada na capa do jornal me informava que o mesmo havia circulado.

A proprietária do estabelecimento explicou-me que infelizmente todo o reparte destinado a Curitiba, parecia ter chegado incompleto e, nem a distribuidora teria dado explicações sobre o fato. Disse-me, ainda, a bondosa senhora, que um leitor antes de mim havia percebido a falta do caderno saindo sem comprar, como eu também o fiz. Diante do exposto, nem me dei ao trabalho de procurar o jornal nas demais bancas do centro.

De volta para casa, a bordo de um possante da linha Bom Retiro-PUC, que me deixou em segurança mas com alguma frustração na esquina de Nilo Peçanha com Carlos Pioli, pensei nas declarações que volta e meia pintam na imprensa, dando conta das dificuldades financeiras que esse grande jornal atravessa, que à maneira dos elefantes começou a morrer há dez anos. Lembro-me que nos bons tempos viajei a Guarapuava com Luiz Fernando Ferreira Levy, então diretor-presidente da GM, na ocasião interessado em fazer contatos com pecuaristas para fomentar a criação de novilhos precoces. Estavam também o Eugênio Stefanello, diretor do Departamento de Economia Rural da Secretaria da Agricultura, e o extensionista José Chotguis, da Emater. Na volta, ocorreu um fato curioso: empresário nos deixou literalmente a pé. O Stefanello não podia ver gravador dando sopa, e apressado Levy foi sozinho para o aeroporto, ordenando ao piloto do táxi-aéreo que levantasse vôo.

Meu assunto, todavia, nada tem a ver com a sorte do citado jornal e nem com os novilhos precoces, aliás, cujo filé é excelente. Só lamentava não ter lido a matéria sobre o relançamento do romance A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, nascido a 16 de junho de 1927 na antiga capital da Paraíba, que a GM publicou em seu caderno cultural do último fim-de-semana. Confesso que mais tarde fiquei um tanto vendido, pois a reportagem bem que poderia ser sobre o novo romance que Ariano promete há muito tempo. Contudo, tenho razões para crer que seja mesmo o anterior, cujas quatro edições ocorreram entre 1971 e 1976, pela José Olympio. Mais tarde houve a edição do Círculo do Livro. Suassuna andou em evidência antes do carnaval, mas ninguém (nem o próprio) deu qualquer notícia sobre romance novo que estivesse para aparecer.

A tese se ampara na entrevista dada a Caros Amigos pelo ilustre fidalgo armorial radicado no Recife desde a mocidade, em junho do ano passado. Discorrendo sobre a longa espera do público por seu romance inédito, encareceu que seu processo criativo é muito lento, porque escreve tudo a mão e, ainda, faz ele próprio as ilustrações. Além disso “ninguém mete a colher no meu trabalho. Nem para dizer onde eu fico, onde eu faço, nem como, nem em quantos volumes, nada! Olhe, esse livro que eu estou fazendo, dificilmente vou encontrar algum editor porque é um livrão enorme”.

Então peço vênia para registrar, recolhendo as taxas e emolumentos cabíveis, que Ariano Suassuna é o mais respeitado intelectual brasileiro vivo e, dificilmente o posto terá sido ocupado até que se tenha formado a primeira geração de brasileiros do terceiro milênio, lá pelo final dos anos 30 (lamento informar que não mais estarei por aqui para conferir). Ariano é sucessor legítimo de homens da estirpe moral e inteligência de Raymundo Faoro, Barbosa Lima Sobrinho, Tristão de Athayde, Gustavo Barroso, Jackson de Figueiredo, Alberto Torres e Joaquim Nabuco, cada um a seu tempo, protagonistas do mais vigoroso pensamento nacional, descartando esse julgamento o viés ideológico individual.

O romance de Ariano Suassuna, que se diz melhor ao escrever peças teatrais (O auto da compadecida e outras), tem sua estrutura ficcional e a própria linguagem fecundada nos folhetos dos cantadores populares do Nordeste, lidos na infância ao lado de José de Alencar, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Eça de Queirós e Aluísio de Azevedo. O romance é tão importante quanto Os sertões, Grande Sertão:Veredas, O tempo e o vento, Menino de engenho, A crônica da casa assassinada e Avalovara, entre os poucos que podem, a meu juízo, ser qualificados como obras primas da literatura brasileira.

Suassuna, acadêmico de escol que divide as honrarias da Casa de Machado de Assis com sumidades tais como José Sarney, Paulo Coelho, Arnaldo Niskier, Ivo Pitangui, Marco Antonio Maciel, e até pouco tempo, Roberto Marinho, é dono de uma obra tão relevante quanto àquela feita por Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Ernesto Sábato, Lezama Lima, Alejo Carpentier e Garcia Márquez, para nos situarmos apenas na América espanhola. Carlos Drummond de Andrade, ao saudar o aparecimento de A Pedra do Reino, que define como memorial, poema e folhetim, exclama que o livro foi concebido “em atmosfera de febre, febril ele mesmo, com a fantasmagoria de suas desaventuras, que trazem a Idade Média para o fundo do Brasil do Novecentos, suas rabelesiadas, seu dramatismo envolto em riso”. Drummond jamais será superado na afirmação de que “não é qualquer vida que gera obra desse calibre”.

Hermilo Borba Filho, grande escritor pernambucano hoje injustiçado pelos editores que o impedem de ser lido pelos mais jovens, grande amigo de Ariano, a quem levou para o Teatro do Estudante de Pernambuco nos anos 50, afirmou não ser dado a comparações, mas se tivesse que comparar o romance do colega, sem hesitação, o compararia à Divina Comédia. Carlos Lacerda viu no livro de Suassuna dimensões literárias e humanas somente encontráveis em Dom Quixote.

Pedro Dinis Quaderna, narrador do romance, afirma-se rapsodo, poeta popular, decifrador, charadista e astrólogo e define a obra como romance armorial-popular brasileiro. Quaderna conta a história do bisavô, num longo depoimento ao juiz-corregedor da vila do Taperoá, na Paraíba, onde Ariano passou a infância depois do assassinato do pai, João Suassuna, que havia governado o Estado após o atentado fatal contra João Pessoa. O antepassado de Quaderna era o rei degolado da Pedra Bonita, e de acordo com Maximiano Campos, no posfácio à edição de 1976, o narrador, tendo como orientadores histórico-literários os amigos Samuel Wandernes e Clemente Hará de Ravasco Anvérsio, assume-se como descendente duma casa real, o próprio Dom Pedro IV do Brasil.

Mas a decifração prometida da morte misteriosa do rei, degolado dentro do quarto ao qual ele só tinha acesso e, por cima, trancado por dentro, vai se perdendo no picaresco emaranhado da rapsódia armorial-heráldica sertaneja, à moda dos cantadores populares que encadeiam um assunto a outro em versos intermináveis.

Quando o juiz o aperta pela enésima vez, Quaderna candidamente confessa que “somos geniais nas idéias e nas conversas, mas quando chega a hora de passar tudo para o papel a desgraça penetra e, em vez do santo, quem baixa é a fatalidade, de modo que não sai nada, por mais que a gente esprema o miolo do juízo”! Aliás, argumento que o próprio Ariano apresentou aos entrevistadores de Caros Amigos por não ter, até aquela data, entregue aos editores “que fazem fila à sua porta” os manuscritos do romance que escreve há tantos anos. Quanto à ironia da fila feita por um perguntador, Ariano rebateu que ao verem o tamanho do livro acabado, os editores decerto mudarão de idéia.

O auto-nomeado monarquista da esquerda revelou ao juiz Joaquim Cabeça-de-Porco que seu “sonho era fazer do Brasil um Império do Belo Monte de Canudos, um Reino de república-popular, com a justiça e a verdade da Esquerda e com a beleza fidalga, os cavalos, os desfiles, a grandeza, os sonhos e as bandeiras da Monarquia Sertaneja”. Enquanto esse dia magno não chegava, Pedro Dinis Quaderna pontificava em Taperoá, entre o natal e o dia de reis, na qualidade de arlequim ou rei do bumba-meu-boi, de chefe das cavalhadas, de imperador do Divino, de rei Dom Pedro da Nau Catarineta, além de velho do Pastoril.

Para meu gosto, que pode diferir de leitores mais argutos, a definição não apenas do romance, mas da essência mesma da alma brasileira que emana dos cinco séculos de caldeamento de fidalgos ibéricos, caboclos tapuias, negros e tardios varões europeus que aqui também vieram dar com os costados, fato que explica toda a zorra que aí está, está na épica narração do duelo entre Samuel e Clemente em torno da figura de Luiz Carlos Prestes, o cavaleiro da esperança. Enfim, entre a direita de Samuel, fidalgo dos engenhos e descendente de um oficial da corte de Maurício de Nassau, e a esquerda de Clemente, um almocreve negro e tangerino tapuia. Quaderna atua como padrinho de Samuel e seu irmão, Malaquias Pavão, faz o mesmo com Clemente. O rapsodo, chegado ao estudo das gestas medievais sugere que para cair melhor o embate seja oficialmente nomeado ordálio brasileiro, com o que ambas as partes concordam.

Clemente, na qualidade de desafiado tem o direito de escolher as armas, e quando Samuel se precata com lança e montante, supondo que Clemente virá enfrentá-lo com a espada plebéia, quase desaba ao saber que as armas do combate serão, literalmente, dois abundantes penicos, os famosos cubas (assim mesmo no masculino, como se usava dizer no sertão). Abespinhado, vocifera contra a zonzeira do desafiado que, a seu ver, reduz às raias do escárnio um prélio tão relevante. Clemente não recua e, por cima, ainda lasca: “Você vai morrer por minha mão, hoje, Samuel! E, o que é pior, vai morrer levando penicadas! Daqui a algum tempo quando alguém perguntar por você, a resposta será: Morreu duma penicada que levou na cabeça, dada por um filósofo negro-tapuia e comunista”!

Aí está o momento supremo de afirmação da cultura brasileira, há tanto tempo escancarada como hímem complacente à invasão de legiões de Harry Potter e senhores anelados, além das torrentes de subgêneros cujos autores faturam tiragens tibetanas deglutidas por babacas que jamais ouviram falar em Dionélio Machado, J.J. Veiga, Guido Wilmar Sassi, Salim Miguel e Raduam Nassar. Os que têm nas entranhas o múnus que anima a raça dos insubmissos, os que pregam a destruição a penicadas da indústria cultural que os anula como cidadãos não podem esquecer Sartre, a maior figura do século XX. Gilles Lapouge, em artigo após a morte daquele que equiparou a Voltaire e Victor Hugo, diz-nos que nenhum escritor foi mais generoso e compartilhou tanto nossas impaciências, curiosidades, decepções e erros. Veio desse gigante o pouco de luz que ainda temos: “Acho que a esperança faz parte do homem”.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor

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