Alca e o consenso

As eleições presidenciais norte-americanas de 2004 influenciarão decisivamente os próximos passos da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Desgastado na opinião pública pelo beco sem saída resultante da invasão do Iraque e precisando de votos para sua reeleição, o presidente Bush nada cederá nas questões dos subsídios agrícolas, das barreiras não-tarifárias e das leis antidumping, mantendo-se intransigente em tirá-las do tapete das discussões, remetendo-as ao âmbito multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC). Ao mesmo tempo, os negociadores oficiais norte-americanos permanecerão inflexíveis para que sejam incluídas nas regras da Alca a abertura sem restrição das compras governamentais, do setor de serviços e dos investimentos, assim como regras draconianas a respeito da propriedade intelectual e, talvez, exigências na área trabalhista e ambiental.

Sem dúvida, são impactantes as circunstâncias políticas internacionais e internas, envolvendo o mais poderoso império de todos os tempos – militar, político e econômico – que idealizou a Alca visando criar um mercado comum do Alasca à Patagônia, que certamente o favoreceria, porque ele concentra indústrias de tecnologia avançada, detém mais de 70% das patentes mundiais, a economia se movimenta com juros básicos de 1% ao ano, a carga tributária é pequena e recepciona capitais e investimentos de toda parte. Nesse panorama, avulta a relevância da reunião dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner e o lançamento do documento Consenso de Buenos Aires, que corporifica os princípios básicos garantidores dos anseios das nações em desenvolvimento. Juntos, Brasil e Argentina, serão mais respeitados nos entendimentos e suas vozes ressoarão com força nos concílios internacionais, servindo para atenuar a flagrante assimetria entre o colosso do norte e as fragilizadas economias latino-americanas.

Nesse contexto, o governo brasileiro vai enfrentar forte pressão no conclave ministerial das Américas em Miami, em novembro vindouro, ocasião em que a nossa delegação terá que haver-se com enorme habilidade e competência para defender os interesses nacionais, visto que o Brasil jamais poderá abdicar de um projeto próprio de desenvolvimento e de políticas industriais e tecnológicas independentes, que salvaguardem sua soberania. Os EUA virão com tudo para a mesa de trabalho e o Itamaraty, que fala por nós após ouvir a opinião dos outros ministérios e das representações classistas e receber do presidente Lula a diretriz de ação, terá que endurecer sua posição, porém sem perder a ternura, isto é, conservando a voz amena, apaziguadora e diplomática, todavia resoluta no alcance dos nossos objetivos, como tem feito com grande mestria o ministro Celso Amorim.

Em outro enfoque, juristas abalizados que analisaram o texto da proposta da Alca chegaram à conclusão que o sistema de arbitragem é anacrônico e profundamente lesivo aos intervenientes mais fracos, privilegiando foros e instâncias norte-americanas para dirimir eventuais futuros contenciosos entre as partes. Os porta-vozes alienígenas de plantão na mídia, no empresariado, no Congresso e até no Executivo estão temerosos que um fracasso ou adiamento de prazos da Alca possa resultar em isolamento do Brasil ou em represálias dos EUA, cujo mercado representa 25% de nossas exportações, e podem aumentar o protecionismo e direcionar inversões para outros países.

Fiquem tranqüilos os amedrontados que lograremos alcançar uma “exitosa Alca”, conforme proclamou a inteligente adjetivação sugerida pelo Itamaraty, no comunicado conjunto expedido após o diálogo Lula-Bush. É bom não esquecer que a Rússia, sempre cortejada pelo governo norte-americano, sequer faz parte da Organização Mundial do Comércio e a China, há pouco admitida na OMC, desfruta de cláusulas preferenciais nas exportações para os Estados Unidos, recebe vultosos capitais estadunidenses, a despeito de ser comunista, com partido único e acusada de violar direitos humanos. As empresas norte-americanas instaladas no Brasil, e que obtêm excelente lucratividade, constituem blindagem e escudo de proteção contra excessos de beligerância.

País de território continental, praticando democracia política, racial e religiosa, congregando 175 milhões de habitantes com riquezas de solo, clima, água, minérios e biodiversidade imensuráveis, para nós a Alca não é uma fatalidade e sim um processo em marcha, que deve remeter para a OMC as questões complexas e, de início, ser implementada apenas com os temas consensuais. O bom senso prevalecerá e com certeza serão escoimados do texto e remetidos à OMC os assuntos explosivos. Para os EUA: subsídios agrícolas e leis antidumping. Para o Brasil: compras, serviços, investimentos e propriedade intelectual. Imagino que nenhum dos dois países quer a ruptura das negociações e almejam chegar a um denominador comum, mas se ela for inevitável que vá às favas a Alca, e o Brasil continuará a perseguir seu destino de potência mundial, quaisquer que sejam as dificuldades e sacrifícios.

Léo de Almeida Neves

– ex-deputado federal e ex-diretor do Banco do Brasil. Autor dos livros Destino do Brasil: Potência Mundial e Vivência de Fatos Históricos.

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