A sexagenária incômoda

No final dos anos 70 e início dos anos 80, o movimento sindical do ABC paulista gritava contra a CLT e a Justiça do Trabalho, responsabilizadas pelo atrelamento dos sindicatos ao Estado e pelo estabelecimento de quadro desfavorável aos avanços da negociação coletiva, cuja face mais visível estava no poder normativo conferido pela Constituição, exercido quase sempre para rejeitar as pretensões obreiras. O então presidente da CUT, insatisfeito com o desempenho dos homens da toga preta do TRT da 2.ª Região, chegou a chamá-los pelo mesmo nome da ave que simboliza o clube de futebol mais popular do mundo: urubu, escolhido como mascote pelo imortal flamenguista Henfil.

A Constituição de 1988, atenta aos anseios daquele que foi o maior movimento organizado dos trabalhadores no Brasil no período pós-industrialização e contra a ditadura militar, rompeu com alguns paradigmas da vinculação dos sindicatos ao Estado, mais especificamente no que diz respeito à ausência de autorização oficial para a criação das entidades e a forma de funcionamento, não recepcionando, assim, normas albergadas pelo entrave denominado CLT.

Pressões políticas exercidas no período da Constituinte, próprias do regime democrático, não permitiram que a liberdade sindical fosse implementada de maneira ampla, permanecendo a unicidade sindical e o imposto compulsório. Manteve-se também o poder normativo da Justiça do Trabalho, que consegue receber críticas e manifestações de apoio por parte dos sindicatos dos trabalhadores.

O fato é que a liberdade sindical, como reivindicada pela classe operária do ABC paulista, ainda não chegou ao Brasil, nem mesmo nos moldes da Convenção n.º 87, da OIT, ratificada pela imensa maioria das nações democráticas do mundo.
Tais considerações devem ter lugar no momento em que é relembrado, a pretexto de flexibilizar a CLT e as relações de trabalho, a existência de reivindicação antiga nesse sentido. A intensidade das críticas à época, inclusive do líder maior do movimento – Luiz Inácio Lula da Silva -, estava concentrada no campo da negociação coletiva prevista na CLT. Já na condição de presidente da República é detentor de força política para promover as mudanças e assim deve trabalhar em nome de uma causa legítima que o consagrou.

Não houve, naquele momento histórico do movimento operário e da vida política nacional, nenhuma defesa ou manifestação política para que as normas individuais do trabalho previstas na CLT fossem revogadas ou reduzidas pela negociação coletiva. A perspectiva sempre foi a da ampliação das conquistas, não havendo sentido cogitar-se da flexibilização dos conceitos da relação de emprego e do contrato realidade, nem mesmo da diminuição de alguma verba ou de garantia lançada na denominada legislação “varguista”.

A tese do contrato coletivo sempre teve como pressuposto o princípio da norma mais favorável ao empregado quando em confronto com a legislação em vigor, recebendo, a última, severas críticas dos sindicatos obreiros e da esquerda que reaparecia no cenário político, pelo fato de conter “migalhas” concedidas pelos patrões na realidade dos anos 40. Neste particular, realmente, a CLT não agradava aos empregados.

Hoje, no entanto, a voz quase uníssona é outra. A CLT que acaba de completar 60 anos atrapalha o desenvolvimento do País e gera desemprego pelo fato de ser detalhista no rol dos direitos dos empregados. Traduzindo: concede benefícios aos trabalhadores além do que o capitalista nacional e internacional pode pagar.
Quem esteve fora de todo o contexto nos últimos 20 anos deve estar imaginando que a remuneração e a participação dos empregados na renda nacional cresceram de forma tão expressiva após o levante primeiro do ABC, justificando, assim, uma séria discussão em torno da diminuição de direitos, hipótese rechaçada pelas pesquisas oficiais sobre o assunto. O menos informado deve saber, no entanto, que a revolução tecnológica foi intensificada. O resultado deste processo foi apropriado apenas pelo detentor da propriedade, as tarefas foram reduzidas e os postos de trabalho foram fechados, aumentando a terceirização e as formas degradantes de exploração do trabalho humano, tendo ocorrido, ainda, a queda de um muro que reforçou o crescimento da ideologia neoliberal no mundo e a precarização das relações de trabalho.

Um detalhe não mudou. Apesar de todo o lacrimejo crocodilante dos grandes empresários, a concentração de renda aumentou de forma extraordinária e está cada vez mais protegida nas mãos de poucos, boa parte vivendo do lucro fácil das aplicações financeiras.

Devo concordar, porém, com a tese de que a sexagenária CLT, mesmo no campo democrático-burguês, contempla salvaguardas importantes para o empregado diante da voracidade insaciável de alguns setores do capital, mas é extremamente generosa com o empregador, considerando que ainda lhe dispensa tratamento até mais flexível do que o da época de uma economia semi-industrial, sem repartir de forma mais justa a renda.

O marco mínimo da CLT precisa ser respeitado e ampliado para dar dignidade ao trabalhador, assim como os direitos sociais previstos na Constituição. Levá-la a julgamento em praça pública só se for para reduzir as desigualdades sociais e não para aprofundá-las em nome do engodo da banca “de que qualquer trabalho é melhor do que nada”.

Grijalbo Fernandes Coutinho é presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).

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