A Reforma do Código de Processo Penal ­ Provas (III)

Lembra, ainda, Luiz Flávio Gomes que “dizia-se que a CF, no art. 5.º, LVI, somente seria aplicável às provas ilícitas ou ilícitas e ilegítimas ao mesmo tempo, ou seja, não se aplicaria para as provas (exclusivamente) ilegítimas. Para esta última valeria o sistema da nulidade, enquanto para as primeiras vigoraria o sistema da inadmissibilidade. Ambas as provas (ilícitas ou ilegítimas), em princípio, não valem (há exceções, como veremos), mas os sistemas seriam distintos. Essa doutrina já não pode ser acolhida (diante da nova regulamentação legal do assunto). Quando o art. 157 (do CPP) fala em violação a normas constitucionais ou legais, não distingue se a norma legal é material ou processual. Qualquer violação ao devido processo legal, em síntese, conduz à ilicitude da prova (cf. Mendes, Gilmar Ferreira et alii, Curso de Direito constitucional, São Paulo: Saraiva: 2007, p. 604-605, que sublinham: “A obtenção de provas sem a observância das garantias previstas na ordem constitucional ou em contrariedade ao disposto em normas fundamentais de procedimento configurará afronta ao princípio do devido processo legal”). Paralelamente às normas constitucionais e legais existem também as normas internacionais (previstas em tratados de direitos humanos). Por exemplo: Convenção Americana sobre Direitos Humanos. No seu art. 8.º ela cuida de uma série (enorme) de garantias. Provas colhidas com violação dessas garantias são provas que colidem com o devido processo legal. Logo, são obtidas de forma ilícita. Uma das garantias previstas no art. 8.º diz respeito à necessidade de o réu se comunicar livre e reservadamente com seu advogado. Caso essa garantia não seja observada no momento da obtenção da prova (depoimento de uma testemunha, v.g.), não há dúvida que se trata de uma prova ilícita (porque violadora de uma garantia processual prevista na citada Convenção). Não importa, como se vê, se a norma violada é constitucional ou internacional ou legal, se material ou processual: caso venha a prova a ser obtida em violação a qualquer uma dessas normas, não há como deixar de concluir pela sua ilicitude (que conduz, automaticamente, ao sistema da inadmissibilidade)”(14).
Esta disposição chega a ser despicienda em razão do referido comando constitucional. É a nossa velha mania de achar que se não estiver previsto em uma lei (infraconstitucional) não está no ordenamento jurídico, ainda que esteja na Constituição Federal!

Entendemos que o ato judicial que determina o desentranhamento das provas ilícitas tem a natureza de decisão interlocutória com força de definitiva, razão pela qual desafia o recurso de apelação (art. 593, II do Código de Processo Penal). A natureza desta decisão vem reforçada pelo § 3.º deste mesmo art. 157 (“preclusa a decisão de desentranhamento”), pois, como se sabe, a preclusão é fato processual próprio de decisões que não tratam do mérito propriamente dito. Para estas, reserva-se o efeito da coisa julgada (evidentemente que a diferença entre preclusão e coisa julgada não se resume a esta circunstância).

Caso se entenda não se tratar de uma decisão com força de definitiva, e não havendo recurso previsto em lei, a solução será a utilização da correição parcial ou do mandado de segurança.

Foram acrescentados mais dois parágrafos ao art. 157, considerando-se “fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.”

A respeito, mais uma vez transcrevemos a lição de Marco Antônio Garcia de Pinho:
“De se ressaltar que se sustenta um argumento relacional, ou seja, para se considerar uma determinada prova como fruto de uma árvore envenenada, deve-se estabelecer uma conexão entre ambos os extremos da cadeia lógica; dessa forma, deve-se esclarecer quando a primeira ilegalidade é condição sine qua non e motor da obtenção posterior das provas derivadas, que não teriam sido obtidas não fosse a existência da referida ilegalidade originária. Estabelecida a relação, decreta-se a ilegalidade. O problema é análogo, diga-se, ao direito penal quando se discute com profundidade o tema do nexo causal. É possível que tenha havido ruptura da cadeia causal ou esta se tenha enfraquecido suficientemente em algum momento de modo a se fazer possível a admissão de determinada prova porque não alcançada pelo efeito reflexo da ilegalidade praticada originariamente”(15).

Ademais, estabelece-se que “preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.”

Quanto às perícias houve nova modificação em relação àquela já ocorrida com a Lei n.º 8.862/94. Assim, ao invés de dois peritos oficiais, a nova redação do art. 159 estabelece que “o exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior” que, na sua falta, será realizado, agora sim, “por 2 (duas) pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame”; neste último caso, os peritos não oficiais deverão prestar “o compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo”, sujeitando-se, inclusive, às sanções penais previstas no art. 342 do Código Penal. Assim, para a realização de um exame cadavérico ou de lesões corporais, na falta de perito oficial, devem ser escolhidos, de preferência, dois médicos, ou um médico e um enfermeiro, ou um médico e um odontólogo. Para a realização de um exame pericial em uma porta arrombada, nomeia-se, preferencialmente, dois engenheiros, ou um engenheiro e um arquiteto, e assim por diante…

Bem de ver que se se tratar “de perícia complexa que abranja mais de uma área de conhecimento especializado, poder-se-á designar a atuação de mais de um perito oficial, e a parte indicar mais de um assistente técnico.” (art. 159, § 7.º).

Ainda sobre os peritos, o art. 2.º desta lei traz uma norma de caráter transitório, disciplinando que “aqueles peritos que ingressaram sem exigência do diploma de curso superior até a data de entrada em vigor desta Lei continuarão a atuar exclusivamente nas respectivas áreas para as quais se habilitaram, ressalvados os peritos médicos”.

Uma grande e alvissareira novidade é a possibilidade agora de assistentes técnicos no processo penal. Diz o § 3.º do art. 159 que “serão facultadas ao Ministério Público, ao assistente de acusação, ao ofendido, ao querelante e ao acusado a formulação de quesitos e indicação de assistente técnico”, que “atuará a partir de sua admissão pelo juiz e após a conclusão dos exames e elaboração do laudo pelos peritos oficiais, sendo as partes intimadas desta decisão.”
Pela utilização dos vocábulos “assistente de acusação” (que só é admissível a partir do início da ação penal, segundo o art. 268 do Código de Processo Penal)(16), “querelante” e “acusado” infere-se que esta faculdade deve ser dada apenas na fase judicial. Por outro lado, se não é possível ao indiciado formular quesitos e indicar assistente técnico, evidentemente que na primeira fase da persecutio criminis, tampouco será permitido ao Ministério Público e ao ofendido fazê-lo. Seria uma violação inequívoca ao princípio da paridade de armas.

Em reforço a este entendimento, observa-se que o § 5.º, acrescentado ao art. 159, prevê que no “curso do processo judicial, é permitido às partes, quanto à perícia: I requerer a oitiva dos peritos para esclarecerem a prova ou para responderem a quesitos, desde que o mandado de intimação e os quesitos ou questões a serem esclarecidas sejam encaminhados com antecedência mínima de 10 (dez) dias, podendo apresentar as respostas em laudo complementar; II indicar assistentes técnicos que poderão apresentar pareceres em prazo a ser fixado pelo juiz ou ser inquiridos em audiência”. (grifo nosso).

Caso haja “requerimento das partes, o material probatório que serviu de base à perícia será disponibilizado no ambiente do órgão oficial, que manterá sempre sua guarda, e na presença de perito oficial, para exame pelos assistentes, salvo se for impossível a sua conservação.”

Esta lei também alterou o art. 201 do Código de Processo Penal. O Capítulo V do Título VII passa a ter a seguinte epígrafe: “Do Ofendido”, ao invés do antigo “Das Perguntas ao Ofendido”. Porém, o caput continua com a mesma redação, sendo que o antigo parágrafo único foi renumerado para o § 1.º., mantendo-se, no entanto, o mesmo texto(17).

A inovação é que foram acrescentados mais cinco parágrafos com a nítida e salutar finalidade de proteção dos interesses da vítima. Nota-se, com Ada, Scarance, Luiz Flávio e Gomes Filho que esta lei insere-se “no generoso e atualíssimo filão que advoga a revisão dos esquemas processuais de modo a dar resposta concreta à maior preocupação com o ofendido”(18).

García-Pablos, por exemplo, informa que “o abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em todos os âmbitos (…). O Direito Penal contemporâneo advertem diversos autores acha-se unilateralmente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, ao âmbito da previsão social e do Direito Civil material e processual”(19).

A própria legislação processual penal relega a vítima a um plano desimportante, inclusive pela “falta de mención de disposiciones expressas en los respectivos ordenamientos que provean medidas para salvaguardar aquellos valores ultrajados”(20).

Esta atenção com a vítima no processo penal é tema atual e tem sido motivo de inúmeros trabalhos doutrinários, como observou o jurista argentino Alberto Bovino:
“Después de varios siglos de exclusión y olvido, la víctima reaparece, en la actualidad, en el escenario de la justicia penal, como una preocupación central de la política criminal. Prueba de este interés resultan la gran variedad de trabajos publicados recientemente, tanto en Argentina como en el extranjero”; (…) mesmo porque “se señala que com frecuencia el interés real de la víctima no consiste en la imposición de una pena sino, en cambio, en “una reparación por las lesiones o los daños causados por el delito’”(21) Neste sentido, veja-se obra bastante elucidativa de Antonio Scarance Fernández(22).

Dois juristas italianos, Michele Correra e Danilo Riponti, também anotaram:

“Il recupero della dimensione umana della vittima, molto spesso reificata, vessata, dimenticata da giuristi e criminologi in quanto oscurata da quella cosí clamorosa ed eclatante del criminale, soddisfa l’intento di rendere giustizia a chi viene a trovarsi in una situazione umana tragica ed ingiusta, a chi ha subito e subisce e danni del crimine e l’indifferenza della società”(23).

Pois bem.

O § 2.º determina que “o ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem”(24).

Tais comunicações, segundo o § 3.º, “deverão ser feitas no endereço por ele indicado, admitindo-se, por opção do ofendido, o uso de meio eletrônico.” É preciso, no entanto, máxima cautela na utilização, por exemplo, de e-mail, especialmente para que não restem dúvidas quanto à respectiva cientificação.

Uma observação urge: é sabido que o art. 598 e seu parágrafo único estabelecem que “o ofendido ou qualquer das pessoas enumeradas no art. 31, ainda que não se tenha habilitado como assistente” tem legitimidade para apelar (além de interesse, evidentemente) quando, “nos crimes de competência do Tribunal do Júri, ou do juiz singular, da sentença não for interposta apelação pelo Ministério Público no prazo legal”, deferindo, inclusive, um prazo bem maior para o recurso (quinze dias a partir da data em que terminar o prazo do Ministério Público).

Ora, a doutrina sempre justificou e admitiu este prazo em triplo concedido à vítima não habilitada como assistente (e aos seus sucessores), exatamente em razão do ofendido (e aquelas demais pessoas) não terem sido intimados da sentença, razão pela qual se justificava um prazo maior pela dificuldade de conhecimento da decisão. Agora, no entanto, estabelecendo a lei que da sentença será também intimada a vítima, parece-nos, à luz do princípio da igualdade, que o prazo deve ser o mesmo de cinco dias previsto no caput do art. 593 do Código de Processo Penal, tornando-se inaplicável o prazo previsto no parágrafo único do art. 598.

Ressalte-se, com Humberto Ávila, que a igualdade (que ele denomina de postulado) “estrutura a aplicação do Direito quando há relação entre dois sujeitos em função de elementos (critério de diferenciação e finalidade da distinção) e da relação entre eles (congruência do critério em razão do fim).” Para ele, a proporcionalidade (que também seria um postulado) “aplica-se nos casos em que exista uma relação de causalidade entre um meio e um fim concretamente perceptível. A exigência de realização de vários fins, todos constitucionalmente legitimados, implica a adoção de medidas adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito”(25).

Notas:

(14)     “Lei 11.690/2008 e provas ilícitas: conceito e inadmissibilidade”, www.parana-online.com.br, 22/6/2008.
(15)     “Breve ensaio das provas ilícitas e ilegítimas no direito processual penal”, http://ultimainstancia.uol.com.br/ ensaios/ler—noticia.php?idNoticia= 34917
(16)     Sobre o assistente, veja-se o que comentamos em nosso Direito Processual Penal, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.
(17)     Sobre o ofendido, veja-se o que comentamos em nosso Direito Processual Penal, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.
(18)     Juizados Especiais Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 5.ª ed., 2005, p. 110.
(19)     Antonio García-Pablos de Molina, Criminologia, São Paulo: RT, 1992,
p. 42, tradução de Luiz Flávio Gomes
(20)     Juan H. Sproviero, La víctima del delito y sus derechos, Buenos Aires: Depalma, p. 24
(21)     Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n.º 21, p. 422
(22)     O Papel da Vítima no Processo Criminal, Malheiros Editores, 1995. Indicamos também o trabalho intitulado “El papel de la víctima en el proceso penal según el Proyecto de Código Procesal Penal
de la Nación”, por Santiago Martínez
(Fonte: www.eldial.com 12/8/2005).
(23)     La Vittima nel Sistema Italiano Della Giustizia Penale Un Approccio criminologico, Padova, 1990, p. 144.
(24)     Ressalte-se a impropriedade técnica em falar-se de manutenção ou modificação de sentença, quando se sabe que o acórdão, na verdade, substitui a primeira decisão, representando um novo título.
(25)     Teoria dos Princípios, São Paulo:
Malheiros, 4.ª ed., 2004, p. 131.

Rômulo de Andrade Moreira é procurador de Justiça na Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-Unifacs, na graduação e na pós-graduação
(Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Autor das obras “Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria) e “Juizados Especiais Criminais” Editora JusPodivm, 2008, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008.

Voltar ao topo