A proposta norte-americana para o Tratado da Alca: um atentado ao Mercosul

A aproximação dos países ao longo da história geralmente aconteceu em virtude de guerras, através das alianças para derrotar um inimigo comum, ou em função do comércio, com a união dos países para facilitar suas trocas. O Direito Internacional Público sempre se fez presente nessas situações, sobretudo através da formalização de tratados internacionais, estabelecendo as condições e características de tais aproximações.

Neste exato momento, negociações para conclusão de um tratado estão em andamento. Trata-se do tratado que prevê a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), o projeto de integração econômica que pretende envolver os países das três Américas com vistas a eliminar progressivamente as tarifas comerciais. Os países envolvidos nas negociações estabeleceram o período entre 15 de dezembro de 2002 e 15 de fevereiro de 2003 para a apresentação de ofertas e propostas.

A minuta da proposta apresentada nesta semana pelos Estados Unidos se parece muito mais como uma declaração de guerra do que com uma oferta comercial para o Brasil e demais parceiros do Mercosul.

Os EUA optaram por mostrar uma oferta diferenciada de redução de suas tarifas, de forma proporcional ao tamanho e grau de desenvolvimento dos países negociadores e de modo a adiar o acesso dos países ao seu mercado pelos. Assim, em relação aos produtos agrícolas, propuseram a eliminação imediata de 85% de tarifas de produtos importados pelos EUA oriundos do Caribe, 64% da América Central e apenas 50% dos países do Mercosul. O índice foi de 91% para o Caribe e 58% para o Mercosul, em relação aos produtos industriais. Não há como não identificar nessa proposta uma tentativa de desagregar o poder de negociação conjunta dos países latino-americanos e de retaliar e isolar os países do Mercosul (principalmente os mais competitivos, como Brasil e Argentina), que já anunciaram que vão negociar em bloco. Além disso, sugeriram que cerca de 56% das importações de produtos agrícolas do continente serão isentas de impostos a partir do primeiro dia da implementação da Alca. Quanto aos restantes 44%, nos quais estão incluídos produtos brasileiros, como açúcar e cítricos, suas tarifas terão uma redução gradual, num período incerto que vai de “cinco a dez anos ou mais”. Posterga-se, portanto, a possibilidade de ampliação da participação de importantes áreas da produção brasileira no mercado regional.

OS EUA ofereceram, também, a eliminação imediata de tarifas de outros produtos, como equipamentos elétricos, para mineração, construção civil, produtos químicos, ambientais, de madeira, da área energética, além de tecnologia da informação, falso tecido, papel e aço. São justamente setores da produção em que os EUA se destacam, pela alta qualidade e grande competitividade, ou que já vem sendo liberalizado pelas próprias regras da OMC, como é o caso do aço.

Outro ponto relevante é a ausência de assuntos importantíssimos para o comércio hemisférico, como as questões relativas a dumping, subsídios internos, restrições fitossanitárias e sistema de cotas de importação (os quais, na proposta americana, deverão ser negociados na OMC.) São as barreiras denominadas não-tarifárias, que prejudicam principalmente os países agrícolas – exatamente aqueles com quem os EUA vão negociar. Em relação ao Brasil, especificamente, são aqueles fatores que mais afetam as exportações de suco de laranja, açúcar, etanol e aço.

Esses itens da proposta norte-americana, como vários outros que não cabe aqui expor, demonstram que o projeto da Alca representa para os EUA a consolidação de sua dominação sobre o continente; o acesso fácil a grandes mercados; a ampliação dos negócios das grandes empresas americanas e um escape do excedente dos setores produtivos americanos.

O Brasil não está vinculado a essa proposta. Princípios consagrados do Direito Internacional Público asseguram o livre consentimento e a boa-fé no momento das negociações dos tratados. Sugere-se cautela e, por isso, o adiamento das negociações. Caso o governo opte por negociar, a fim de ter maior repercussão no cenário internacional e de atrair novos parceiros, como a União Européia, sabe-se que não é necessário cumprir com os prazos, as metas e os temas propostos pelos EUA. O governo norte-americano tem que saber que os países que estão discutindo a Alca são soberanos, são juridicamente iguais. E entre iguais não há império.

Tatyana Scheila Friedrich

é advogada, mestre pela UFPR, membro do Nupesul (Núcleo de Pesquisa em Direito Público do Mercosul) e professora de Direito Internacional Público no curso de Direito das Faculdades Curitiba e no curso de Relações Internacionais da Universidade
Tuiuti. tatyanafriedrich@yahoo.com

Voltar ao topo