A luz da palavra

Com a profundidade que lhe é própria, principia o livro sagrado dos cristãos: “Faça-se a luz!” e as trevas se dissiparam. Com o início da raça humana e antes da descoberta da palavra os homens viviam em uma espécie de escuridão, e a luz começaria a se fazer aos poucos, na exata medida em que se comunicassem. Hoje, a “luz da palavra” não atingiu seu requinte máximo de perfeição, ou teve seu apogeu e está declinando com paulatina volta às trevas.

Em recentes solenidades de formaturas, da platéia, observei a facilidade com que nos discursos se usam termos como “constituição”, “legalidade”, “democracia”, “estado de direito”, “justiça”, “justiça social”. E assim, arrancam acalorados manifestos da platéia. Creio que os aplausos são, em verdade, pela vitória pessoal do formando, e não pela comparação do que se fala com a realidade. Se conseguíssemos colocar em um grande livro todos os discursos de formaturas dos últimos vinte anos, de quaisquer áreas, poderíamos fundar uma sociedade “lítero-musical” e, nos objetivos sociais, todas as utopias inatingíveis que pinçaríamos dessas belas peças.

Certa feita, quando falávamos de liberdade de expressão, um senhor chinês nos narrou que em determinada época e ponto da China, a repressão atingira um grau tão elevado que muitas pessoas estavam trocando a palavra por gestos. Assim, imaginavam elas, não correriam riscos de incompreensões ou erradas interpretações, com conseqüências letais.

Quando nascemos nos comunicamos com a linguagem do sono, da calma, do choro e todos nos compreendem. Como admitir que pessoas adultas e preparadas não entendam o que está escrito nas leis pátrias ou nas solicitações dos cidadãos quando as invocam em seu socorro? Acredito mais que pessoas detentoras de poder entendem perfeitamente e se beneficiam desse “faz-de-conta da incompreensão” e, enquanto não contidas, vão exercendo seu despotismo, impondo suas vontades pessoais acima das leis, reinando em geral sobre os socialmente mais frágeis e desprotegidos.

Admitir que se instale em cada sala de repartição pública dos poderes um “pequeno reinado” com cultura e sistemas próprios, quando o princípio da legalidade buscou exatamente abolir essas práticas, é, sem dúvida alguma, um recuo. Fôssemos uma orquestra e nossas leis as partituras, estaríamos desempregados com nossos instrumentos, pois, no conjunto, produziríamos ensurdecedores ruídos jamais comparáveis com música.

Lamento o atual quadro de trevas. Palavras: “lei”, “amor”, “justiça”, “direito”, “cidadania”, “respeito”, “prudência”, “fraternidade”, entre tantas preciosidades, não podem ser reduzidas a meros sons sem sentido. São termos tão significativos que levam a uma pronta compreensão, em qualquer idioma. De que valem as liberdades públicas, mesmo de expressão ou legalidade na ausência da seriedade? Lembremo-nos que um tiro de canhão ou um “considere-se preso!” têm compreensão e aplicações imediatas.

Não estou aqui exumando o bíblico “surdo que não quer ouvir”, e sim um “falso surdo contemporâneo”, perigoso déspota que funda aí seu reinado. Talvez o meramente dizer e compreender seja fácil. Difícil será debelar esses “reinados do faz-de-conta da incompreensão”. Pior que a Torre de Babel, nossas atuais trevas. Não estamos nos entendendo, embora com um mesmo idioma…

Elias Mattar Assad (eliasmattarassad.com.br) é presidente da Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas.

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