A Lei Maria da Penha e suas inconstitucionalidades (I)

RESUMO: Trata-se de um trabalho de interpretação à luz da Constituição Federal de alguns dispositivos contidos na Lei n.º 11.340/06, a chamada ?Lei Maria da Penha? que, em tese, procurou criar ?mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher?. Apesar da referida lei não trazer nenhum novo tipo penal, deu-se um tratamento penal e processual diferençado para as infrações penais já elencadas em nossa legislação. Em que pese a necessidade de uma tutela penal distinta para hipossuficientes, é preciso respeitar-se a Constituição Federal e os princípios dela decorrentes e inafastáveis. Conclui-se que os arts. 17 e 41 da Lei n.º 11.340/2006, além do inciso IV do art. 313 do Código de Processo Penal, não devem ser aplicados, pois, apesar de normas vigentes formalmente, são substancialmente inválidas, tendo em vista a incompatibilidade material com a Constituição Federal.

I INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por escopo comentar alguns dispositivos contidos na Lei n.º 11.340/06, a chamada ?Lei Maria da Penha? que, em tese, procurou criar ?mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher?(2).

Segundo a lei, ?configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial?. A violência pode ser praticada ?no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas?, ?no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa? ou ?em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.?

Compreende ?a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal?, ?a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação?, ?a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos?, ?a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades? e ?a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria?.

É importante ressaltar que a lei não contém nenhum novo tipo penal, apenas dá um tratamento penal e processual distinto para as infrações penais já elencadas em nossa (vasta e exagerada) legislação.

Segundo o seu art. 6.º, a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos; logo, é possível que a apuração do crime daí decorrente seja da atribuição da Polícia Federal, na forma do art. 1.º, III, parágrafo único da Lei n.º 10.446/02 (se atendidos os pressupostos do caput); ainda em tese, também é possível que a competência para o processo e julgamento seja da Justiça Comum Federal, ex vi do art. 109, V-A, c/c o § 5.º, da Constituição Federal (desde que haja e seja julgado procedente o Incidente de Deslocamento de Competência junto ao Superior Tribunal de Justiça). Esta conclusão decorre das normas referidas, bem como em razão do Brasil ser subscritor da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher e da Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.

Não pretendemos ferir suscetibilidades ou indiossincrasias, apenas manifestar o nosso entendimento sobre uma norma jurídica que entendemos ferir a Constituição Federal. Como diz Paulo Freire, ?só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes, pense errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas. Por isso é que o pensar certo, ao lado sempre da pureza e necessariamente distante do puritanismo, rigorosamente ético e gerador de boniteza, me parece inconciliável com a desvergonha da arrogância de quem se acha cheia ou cheio de si mesmo(3)?.

Estamos de acordo com a tutela penal diferençada para hipossuficientes (inclusive pelo desvalor da ação(4)), mas sem máculas à Constituição Federal e aos princípios dela decorrentes e inafastáveis. Neste ponto, concordamos com Naele Ochoa Piazzeta, quando afirma que ?corretas, certas e justas modificações nos diplomas legais devem ser buscadas no sentido de se ver o verdadeiro princípio da igualdade entre os gêneros, marco de uma sociedade que persevera na luta pela isonomia entre os seres humanos, plenamente alcançado(5)?.

Como afirma Willis Santiago Guerra Filho, ?princípios como o da isonomia e proporcionalidade são engrenagens essenciais do mecanismo político-constitucional de acomodação dos diversos interesses em jogo, em dada sociedade, sendo, portanto, indispensáveis para garantir a preservação de direitos fundamentais, donde podermos incluí-los na categoria, equiparável, das ?garantias fundamentais?(6)?.

II A RETRATAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO

Inicialmente analisaremos o art. 16 da referida lei que tem a seguinte redação: ?Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.?

Desde logo, atentemos para a impropriedade técnica do termo ?renúncia?, pois se o direito de representação já foi exercido (tanto que foi oferecida a denúncia), obviamente não há falar-se em renúncia; certamente o legislador quis referir-se à retratação da representação, o que é perfeitamente possível, mesmo após o oferecimento daquela condição específica de procedibilidade da ação penal.

Sabe-se, no entanto, que o art. 25 do Código de Processo Penal só permite a retratação da representação até o oferecimento da denúncia; no caso desta lei, porém, a solução do legislador foi outra, permitindo-se a retratação mesmo após o oferecimento da peça acusatória. O limite agora (e quando se tratar de crime relacionado à violência doméstica e familiar contra a mulher) é a decisão do Juiz recebendo a denúncia.

Portanto, diferentemente da regra estabelecida pelo art. 25 do Código de Processo Penal, a retratação da representação pode ser manifestada após o oferecimento da denúncia, desde que antes da decisão acerca de sua admissibilidade. Neste ponto, mais duas observações: em primeiro lugar a lei foi mais branda com os autores de crimes praticados naquelas circunstâncias, o que demonstra de certa forma uma incoerência do legislador. Ora, se se queria reprimir com mais ênfase este tipo de violência, por que ?elastecer? o prazo para a retratação da representação? Evidentemente que é mais benéfica para o autor do crime a possibilidade de retratação em tempo maior que aquele previsto pelo art. 25, CPP.

Tratando-se de norma processual penal material, e sendo mais benéfica, deve retroagir para atingir processos relativos aos crimes praticados anteriormente à vigência da lei (data da ação ou omissão arts. 2.º e 4.º do Código Penal)(7).

Uma segunda observação é a exigência legal que esta retratação somente possa ser feita ?perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, (…) ouvido o Ministério Público.? Aqui, a intenção do legislador foi revestir a retratação de toda a formalidade própria de uma audiência realizada no Juízo Criminal, presentes o Juiz de Direito e o Ministério Público. Neste aspecto, sendo mais gravosa a norma processual penal material, sua aplicação deve se restringir aos fatos ocorridos posteriormente, ou seja, para os crimes praticados após a vigência da lei.

De toda maneira, ressaltamos que se esta retratação deve ser necessariamente formal (e formalizada), o mesmo não ocorre com a representação que, como sabemos, dispensa maiores formalidades (sendo este um entendimento já bastante tranqüilo dos nossos tribunais e mesmo da Suprema Corte). O prazo para o oferecimento da representação (bem como o dies a quo) continua sendo o mesmo (art. 38, CPP). Ademais, é perfeitamente válida a representação feita perante a autoridade policial, pois assim permite o art. 39 do CPP.

Como se sabe, a representação é uma condição processual relativa a determinados delitos, sem a qual a respectiva ação penal, nada obstante ser pública, não pode ser iniciada pelo órgão ministerial; é uma manifestação de vontade externada pelo ofendido (ou por quem legalmente o represente) no sentido de que se proceda à persecutio criminis. De regra, esta representação ?consiste em declaração escrita ou oral, dirigida à autoridade policial, ou ao órgão do Ministério Público, ou ao Juiz?, como afirmava Borges da Rosa(8). Porém, a doutrina e a jurisprudência pátrias trataram de amenizar este rigor outrora exigido, a fim de que pudessem ser dados ao instituto da representação traços mais informais e, conseqüentemente, mais justos e consentâneos com a realidade.

Assim é que hodiernamente ?a representação, quanto à formalidade, é figura processual que se reveste da maior simplicidade. Inocorre, em relação à mesma qualquer rigor formal? e esta ?dispensa do requisito das formalidades advém da circunstância de que a representação é instituída no interesse da vítima e não do acusado, daí a forma mais livre possível na sua elaboração(9)?.

Neste sentido a jurisprudência é pacífica:

?SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA HABEAS CORPUS N.º 20.401 RJ (2002/0004648-6) (DJU 5/8/02, SEÇÃO 1, P. 414, J. 17/6/02). RELATOR: MINISTRO FERNANDO GONÇALVES. EMENTA: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PERDA DO OBJETO. CRIME CONTRA OS COSTUMES. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. REPRESENTAÇÃO. FORMA SACRAMENTAL. INEXIGIBILIDADE. 1 – Resta prejudicado o habeas corpus, por falta de objeto, quando o motivo do constrangimento não mais existe. 2 – Nos crimes de ação pública, condicionada à representação, esta independe de forma sacramental, bastando que fique demonstrada, como na espécie, a inequívoca intenção da vítima e/ou seu representante legal, nesta extensão, em processar o ofensor. Decadência afastada. 3 – Ordem conhecida em parte e, nesta extensão, denegada.?

Este também é o entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal (neste sentido conferir: RT 731/522; JSTF 233/390; RT 680/429).

Pergunta-se: deve o representante do Ministério Público, antes de oferecer a denúncia, pugnar ao juiz pela realização daquela audiência? Entendemos que não, pois a audiência prevista neste artigo deve ser realizada apenas se a vítima (ou seu representante legal ou sucessores ou mesmo o curador especial – art. 33 do Código de Processo Penal) manifestar algum interesse em se retratar da representação. Não vemos necessidade de, a priori, o órgão do Ministério Público requerer a designação da audiência. Ora, se a vítima representou (seja formal ou informalmente), satisfeita está a condição de procedibilidade para a ação penal. O requerimento para a realização desta audiência (ou a sua designação ex officio pelo juiz de Direito) fica ?até parecendo? que se deseja a retratação a todo custo.

Observa-se, outrossim, que a retratação deve ser um ato espontâneo da vítima (ou de quem legitimado legalmente), não sendo necessário que ela seja levada a se retratar por força da realização de uma audiência judicial.

III A APLICAÇÃO DA PENA DE PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA

Em seguida, dispõe o art. 17 ser ?vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.?

A princípio, tendo em vista o disposto no art. 41 da mesma lei (que adiante iremos comentar), a proibição da aplicação da pena de prestação pecuniária (ou multa) é dirigida ao Juiz de Direito, no momento em que irá proferir a sentença condenatória. Sim, pois se se admitir a impossibilidade da transação penal (art. 41), evidentemente que o dispositivo comentado refere-se, tão-somente, à sentença condenatória.

A pena alternativa de prestação pecuniária está prevista no art. 43, I do Código Penal e consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários. Se houver aceitação do beneficiário, a prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza(10).

Restou clara a intenção do legislador de evitar a barganha, a ?troca? de uma cesta básica ou dinheiro ou multa pela agressão praticada contra a mulher naquelas circunstâncias já referidas no início. Interessante é a afirmação de Janaína Paschoal para quem, ?tão humilhante como buscar a punição de seu agressor e vê-lo sair vitorioso doando uma única cesta básica, muita vez comprada pela própria vítima, é ver o Estado desconsiderar a sua vontade(11)?.

Apesar de ser coerente com a finalidade da lei, não cremos que tal disposição possa se sustentar frente à Constituição Federal, principalmente à luz dos princípios da proporcionalidade e da igualdade. Atente-se, com Luiz Flávio Gomes, que ?o princípio da proporcionalidade tem base constitucional (é extraído da conjugação de várias normas: arts. 1.º, III, 3.º, I, 5.º, caput, II, XXXV, LIV, etc.) e complementa o princípio da legalidade(12)?.

Igualmente, ?el principio de proporcionalidad que, como ya indicado, surgió en el Derecho de policía para pasar a impregnar posteriormente todo el Derecho público, ha de observarse también en el Derecho Penal(13)?.

Por que proibir a aplicação de uma pena alternativa à pena privativa de liberdade em razão do sujeito passivo de um crime? A exclusão deve ser prevista em razão da gravidade do delito, não em razão da vítima ser mulher em situação de violência doméstica e familiar. O que justifica, à luz da Constituição Federal, a adoção de regime mais gravoso para determinados crimes é a própria gravidade do delito (aferida pela pena abstratamente cominada ou pelo bem jurídico tutelado, o que não é o caso, mesmo porque a lei não tipifica nenhuma conduta penalmente relevante). A propósito, observamos, mutatis mutandis, que o art. 61 da Lei n.º 9.099/95 foi modificado exatamente para retirar aquela ressalva quanto ao procedimento especial (que ensejava a exclusão do crime como sendo de menor potencial ofensivo). A doutrina nunca entendeu muito bem o porquê da ressalva, pois o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo deveria levar em conta apenas a pena máxima abstratamente cominada, sendo o tipo de procedimento absolutamente indiferente para aquele fim. Tal entendimento acabou prevalecendo com a promulgação da Lei n.º 11.313/06 que alterou a redação do art. 61 da Lei n.º 9.099/95.

Note-se que a Constituição Federal, razoável e proporcionalmente, estabelece regimes penal e processual mais gravosos para autores dos chamados crimes hediondos, a tortura, o tráfico ilícito de drogas, o terrorismo, o racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; ao passo que permite medidas despenalizadoras quando se trata de infração penal de menor potencial ofensivo (cfr. arts. 5.º, XLII, XLII e XLIV e 98, I, ambos da Constituição Federal).

Como, então, tratar diferentemente autores de crimes cuja pena máxima aplicada não foi superior a quatro anos, se atendidos os demais requisitos autorizadores da substituição (art. 44 do Código Penal)? Assim, acusados por crimes como furto, receptação, estelionato, apropriação indébita, peculato, concussão, etc., podem ser beneficiados pela substituição da pena privativa de liberdade por prestação pecuniária ou multa. Já um condenado por uma injúria ou uma ameaça (pena máxima de seis meses), estará impedido de ser beneficiado pela substituição, caso tenha praticado aqueles delitos contra uma mulher, em situação de violência doméstica e familiar. Convenhamos tratar-se de um verdadeiro despautério; a violação aos referidos princípios constitucionais salta aos olhos!

Na lição de Sebástian Melo, ?sendo o Direito Penal um instrumento de realização de Direitos Fundamentais, não pode prescindir do princípio da proporcionalidade para realização de seus fins. Esse princípio, mencionado com destaque pelos constitucionalistas, remonta a Aristóteles, que relaciona justiça com proporcionalidade, na medida em que assevera ser o justo uma das espécies do gênero proporcional. Seu conceito de proporcionalidade repudia tanto o excesso quanto a carência. A justiça proporcional, em Ética e Nicômaco é uma espécie de igualdade proporcional, em que cada um deve receber de forma proporcional ao seu mérito. Desta forma, para Aristóteles, a regra será justa quando seguir essa proporção. Nas palavras do filósofo grego em questão, a sua igualdade proporcional representa uma ?conjunção do primeiro termo de uma proporção com o terceiro, e do segundo com o quarto, e o justo nesta acepção é o meio-termo entre dois extremos desproporcionais, já que o proporcional é um meio termo, e o justo é o proporcional(14)?.

Ao comentarmos adiante o art. 41, aprofundaremos esta questão à luz dos referidos princípios constitucionais. Mas, desde logo, reafirmamos, com Humberto Ávila, que a igualdade (que ele denomina de postulado) ?estrutura a aplicação do Direito quando há relação entre dois sujeitos em função de elementos (critério de diferenciação e finalidade da distinção) e da relação entre eles (congruência do critério em razão do fim).? Para ele, a proporcionalidade (que também seria um postulado) ?aplica-se nos casos em que exista uma relação de causalidade entre um meio e um fim concretamente perceptível. A exigência de realização de vários fins, todos constitucionalmente legitimados, implica a adoção de medidas adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito(15)?.

IV AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA

Quanto às medidas protetivas de urgência, assim chamadas pela lei, ?poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida (art. 19), não havendo necessidade, no último caso, de ser o pedido subscrito por advogado(16), e ?independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público?.

Algumas destas medidas são salutares, seja do ponto de vista de proteção da mulher, seja sob o aspecto ?descarcerizador? que elas encerram. Em outras palavras: é muito melhor que se aplique uma medida provisória não privativa de liberdade do que se decrete uma prisão preventiva ou temporária (adiante trataremos do novo inciso acrescentado ao art. 313 do Código de Processo Penal).

Como afirma Rogério Schietti Machado Cruz, ?se a pena privativa de liberdade, como zênite e fim último do processo penal, é um mito que desmorona paulatinamente, nada mais racional do que também se restringir o uso de medidas homólogas (não deveriam ser) à prisão-pena, antes da sentença condenatória definitiva. É dizer, se a privação da liberdade como pena somente deve ser aplicada aos casos mais graves, em que não se mostra possível e igualmente funcional outra forma menos aflitiva e agressiva, a privação da liberdade como medida cautelar também somente há de ser utilizada quando nenhuma outra medida menos gravosa puder alcançar o mesmo objetivo preventivo(17)?.

A previsão de tais medidas protetivas (ao menos em relação a algumas delas) encontra respaldo na Resolução 45-110 da Assembléia Geral das Nações Unidas Regras Mínimas da ONU para a Elaboração de Medidas Não-Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio, editadas nos anos 90). Estas regras ?enunciam um conjunto de princípios básicos para promover o emprego de medidas não-privativas de liberdade, assim como garantias mínimas para as pessoas submetidas a medidas substitutivas da prisão(18)?.

Por terem a natureza jurídica de medidas cautelares, devem observar, para a sua decretação, a presença do fumus commissi delicti e do periculum in mora. Sem tais pressupostos, ilegítima será a imposição de tais medidas. Devemos atentar, porém, para a lição de Calmon de Passos, segundo a qual ?o processo cautelar é processo de procedimento contencioso, vale dizer, no qual o princípio da bilateralidade deve ser atendido, sob pena de nulidade. A lei tolera a concessão inaudita altera pars de medida cautelar, nos casos estritos que menciona (art. 804), mas impõe, inclusive para que subsista a medida liminarmente concedida, efetive-se a citação do réu e se lhe enseje a oportunidade de se defender (arts. 802, II e 811, II)(19)?.

Como, em tese, é possível a decretação da prisão preventiva em caso de descumprimento injustificado da medida protetiva (adiante comentaremos o art. 313, IV do CPP), entendemos ser perfeitamente cabível a utilização do habeas corpus para combater uma decisão que a aplicou. Como se sabe, o habeas corpus deve ser também conhecido e concedido sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Logo, se a medida protetiva foi abusiva (não necessária), cabível a utilização do habeas corpus que visa a tutelar a liberdade física, a liberdade de locomoção do homem: ius manendi, ambulandi, eundi ultro citroque. Como já ensinava Pontes de Miranda, em obra clássica sobre a matéria, é uma ação preponderantemente mandamental dirigida ?contra quem viola ou ameaça violar a liberdade de ir, ficar e vir(20)?. (grifo nosso).

Para Celso Ribeiro Bastos ?o habeas corpus é inegavelmente a mais destacada entre as medidas destinadas a garantir a liberdade pessoal. Protege esta no que ela tem de preliminar ao exercício de todos os demais direitos e liberdades. Defende-a na sua manifestação física, isto é, no direito de o indivíduo não poder sofrer constrição na sua liberdade de se locomover em razão de violência ou coação ilegal(21)?.

Aliás, desde a Reforma Constitucional de 1926 que o habeas corpus, no Brasil, é ação destinada à tutela da liberdade de locomoção, ao direito de ir, vir e ficar.

Notas:

(1)     Janaína Paschoal, ?Mulher e Direito Penal?, Coordenadores: Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 3.

(2)     Sobre o assunto, além de vários artigos já publicados na internet, indicamos: ?Violência Doméstica?, de Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007; ?Violência Doméstica?, de Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti, Salvador: Editora JusPodivm, 2007 e ?Estudos sobre as novas leis de violência doméstica contra a mulher e de tóxicos?, obra coletiva coordenada por André Guilherme Tavares de Freitas, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.

(3)     Pedagogia da Autonomia, São Paulo: Paz e Terra, 35.ª ed., 2007, p. 28.

(4)     Como se sabe, a antijuridicidade de um comportamento é composta pelo chamado desvalor da ação e pelo desvalor do resultado; o primeiro, segundo Cezar Roberto Bitencourt, é a ?forma ou modalidade de concretizar a ofensa?, enquanto que o segundo é ?a lesão ou exposição a perigo do bem ou interesse juridicamente protegido.? Este mesmo autor, citando agora Jescheck, ensina que modernamente a ?antijuridicidade do fato não se esgota na desaprovação do resultado, mas que ?a forma de produção? desse resultado, juridicamente desaprovado, também deve ser incluído no juízo de desvalor.? (Teoria Geral do Delito, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 121/124). Segundo Luiz Flávio Gomes, deve-se a Welzel ?o enfoque do delito como desvalor da ação (negação de um valor pela ação) mais desvalor do resultado. (…) O delito não é fruto exclusivamente do desvalor do resultado, senão sobretudo (na visão de Welzel) do desvalor da ação, que, no seu sistema, goza de primazia. O desvalor da ação, de qualquer modo, passa a constituir requisito obrigatório de todo delito.? (Estudos de Direito Penal e Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, pp. 220/221). Assim, é inegável que o estudo da antijuridicidade leva à conclusão de que esta se perfaz não apenas com a valoração do resultado como também (e tanto quanto) com o juízo de valor a respeito da ação (ou omissão). Munõz Conde, na sua Teoria Geral do Delito, explica bem esta dicotomia e a imprescindibilidade da conjunção entre estes dois elementos: ?Nem toda lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico (desvalor do resultado) é antijurídica, mas apenas aquela que deriva de uma ação desaprovada pelo ordenamento jurídico (desvalor da ação).? Em vista dessa percepção, diz o mesmo autor que o Direito Penal ?não sanciona toda lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico, mas só aquelas que são conseqüências de ações especialmente intoleráveis.? E continua o mestre espanhol: ?Ambos os conceitos, desvalor da ação e desvalor do resultado, são igualmente importantes na configuração da antijuridicidade, de vez que estão perfeitamente entrelaçados e são inimagináveis separados (…), contribuindo ambos, no mesmo nível, para constituir a antijuridicidade de um comportamento?. (…) ?O que sucede é que, por razões de política criminal, o legislador na hora de configurar os tipos delitivos pode destacar ou fazer recair acento em um ou em outro tipo de desvalor.? (Teoria Geral do Delito, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, tradução de Juarez Tavares e Luiz Régis Prado, p. 88/89).

(5)     O Princípio da Igualdade no Direito Penal Brasileiro Uma Abordagem de Gênero, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001, p. 174.

(6)     Introdução ao Direito Processual Constitucional, Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 46.

(7)     Sobre a sucessão das leis processuais no tempo, conferir o nosso ?Juizados Especiais Criminais?, Salvador: JusPodivm, 2007, págs. 101 a 107.

(8)     Processo Penal Brasileiro, Vol. I, p. 169.

(9)     Ação Penal nos Crimes Contra os Costumes, de Geraldo Batista de Siqueira, p. 24.

(10)     Entendemos que a expressão genérica ?prestação de outra natureza? fere o princípio da legalidade. Cezar Roberto Bitencourt afirma que ?essa falta de garantia e certeza sobre a natureza, espécie ou quantidade da ?prestação de outra natureza? caracteriza a mais flagrante inconstitucionalidade!?, exatamente por serem inadmissíveis, ?em termos de sanções criminais?, ?expressões vagas, equívocas e ambíguas?, exatamente em razão do princípio da legalidade.

(11)     Obra citada, p. 3.

(12)     Penas e Medidas Alternativas à Prisão, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 66.

(13)     Nico

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