A globalização dos problemas

Siga-me, leitor(a). Vou descrever uma cena e convidar você a identificar o lugar em que ela aconteceu.

Um rosto lindo de uma jovem frente ao espelho. Maquia-se no melhor estilo adolescente-querendo-parecer-mulher. (Maldosamente, eu a imagino no futuro, com mais 20 ou 30 anos, maquiando-se no melhor estilo mulher-querendo-parecer-adolescente.) Os olhos devidamente travestidos em olhar sexy. As maçãs do rosto avermelhadas e apetitosas como a fruta similar que tentou Adão. Cabelo falsamente desalinhado por longos minutos de superposição e deslocamento de fios. Os lábios (ah, esses ímãs do olhar masculino!), bem, os lábios recebem no exato momento da foto a camada final do rubro batom, que dará o toque sedutor àquele rosto transmudado.

Trata-se de uma foto publicitária. Sob ela, em letras de muita provocação uma frase: ?… se ela cuidasse assim de sua ortografia??

Concedo a liberdade aos leitores de imaginar que estou inventando: primeira hipótese. Que estou menosprezando os leitores: segunda hipótese. Que estou neurótica de tanto falar, escrever e defender um maior cuidado com a língua portuguesa: terceira hipótese. Que realmente vi e li foto e frase: quarta hipótese. Que estou recontando o que ouvi: quinta hipótese.

Confesso: estou repassando o que ouvi, com alguns adjetivos a mais. A frase e a situação, no entanto, são verdadeiras.

Agora vem a melhor parte. Convido a todos para adivinhar em que lugar esta publicidade apareceu. No interior do Brasil? No parlamento brasiliense? Em uma universidade? Numa peça publicitária do governo federal? No Rio de Janeiro? Afeganistão? Timor Leste? Ilhas Caimã? Na China?

Quem disse na França, em Paris (eterna cidade-luz), na capital mais charmosa da Europa, acertou.

Está em vagões do metrô, os mesmos que trazem poemas expostos nas paredes dos carros habitados por milhares de pessoas ao longo do dia e da noite. Ouvi esse relato com os ouvidos que irão deliciar os vermes. E com a memória, que levarei comigo, e que os vermes não irão aproveitar, relembro minhas professoras de francês a exaltar a cultura dos franceses, os altos índices de leitura e a língua escrita praticada com esmero e justeza desde os primeiros momentos da alfabetização. Relembro a inveja descomunal que sentia dos meus colegas desconhecidos, naquele mesmo momento estudando nas maravilhosas escolas das cidades francesas.

Tenho nítida a imagem de minha completa e abestalhada admiração pelos textos de Montaigne, Balzac, Flaubert, Camus, Dumas. Como alguém nesse mundo de meu Deus podia escrever assim? E agora vêm me dizer que os jovens franceses não sabem ortografia? ?Si elle soignait autant son orthographe?? Esse estágio tão primário na aquisição das belezas de um idioma?

Penso nos brasileiros, tão mais distantes do que os franceses em relação a leituras e escritas. Recordo pesquiza, hontem, havião, entitulado, concerteza, nadaver e outros mais.

Sei que, segurando a caneta ou teclando, esses monstrengos ortográficos aparecem em jovens que amam baladas, música e cerveja. Em outros que lutam pela sobrevivência em trabalhos e empregos de toda a ordem. Que amam, traem, riem, desprezam… Sei que desdenham as normas ortográficas, e que reagem a quem as conhece, corrige e cobra. E sempre justificam: ?Mas todos entendem assim mesmo!?.

A França, país de primeiro mundo, com cultura milenar, admirada através de seus artistas e escritores, faz campanha contra o analfabetismo; por que não o faremos nós? Acaso nossos trogloditas da escrita são melhores do que os deles? Também o analfabetismo funcional foi globalizado.

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