A “estirpe de Caim” ou sob o signo da violência

A espiral da violência e da criminalidade, com que há muitos anos vimos nos debatendo, parece estar atingindo patamares simplesmente inquietantes. Não há como evitar essa constatação sinistra: os meios de comunicação de massa se encarregam de nos oferecer quotidianamente as imagens dessa realidade sombria, deletéria.

Mas é bom ter ciência e consciência de que a criminalidade e a violência, mais do que explosões desenfreadas do irracionalismo humano, são muitas vezes uma erupção dramática provocada por carências sociais de vários tipos, não atendidas -ou deficientemente atendidas.

Assim, enquanto os psicólogos examinam, com base em complexas teorias comportamentais (e psicossociais), as causas geradoras e os motivos determinantes do fenômeno, que embora universal assume entre nós peculiar intensidade, os índices estatísticos que o documentam chegam a revelar-se simplesmente assustadores. A “estirpe de Caim” é incomensurável.

Enquanto os sociólogos estudam, à luz dos princípios e das leis que regem a mecânica social, as injunções e as variáveis que condicionam e até estimulam o processo, a violência prospera e a criminalidade intensifica-se.

Enquanto os educadores se debruçam, preocupados, compenetrados e atentos, sobre o universo rico e multiforme da criança e de toda a vasta problemática que dele emana, a delinqüência juvenil extravasa perigosamente todos os diques e comportas, e novas safras de menores, abandonados ou carentes, se incorporam a cada instante às legiões da marginalidade, um dos cânceres urbanos do nosso tempo agoniado e aflito.

Enquanto os políticos de todas as plumagens partidárias e ideológicas fazem discursos ve-ementes (onde a retórica assume a forma das catedrais góticas ou das mesquitas bizantinas), denunciando a terrível situação e clamando por providências e medidas saneadoras, a escalada aterradora parece recrudescer e intensificar-se desmedidamente.

Enquanto as autoridades responsáveis, aturdidas e perplexas, discutem fórmulas, debatem táticas operacionais e metodologias estratégicas, a espiral sinistra, feita de furtos e assaltos, agressões e seqüestros, contravenções de toda a ordem, mortos e feridos, atinge um novo patamar.

Em face desse quadro conjuntural – mas também estrutural, ai de nós – simplesmente desesperador, generaliza-se em todos os quadrantes da sociedade a inquietação. A angústia, a perplexidade, o medo – quando não o luto -, tomam conta da população sobressaltada, que se sente possuída, nos recessos mais fundos da alma, por uma dramática sensação de impotência.

O diagnóstico do mal – autêntica epidemia social – não é difícil. O caldo de cultura onde proliferam os germes mortais é feito de ingredientes de natureza econômica, social e até mesmo cultural. A começar pelo crescimento demográfico incontrolado (embora ele tenha declinado na última década), pela urbanização desordenada, pelo desemprego, baixos salários, péssimas condições de habitação, saúde e educação, desajustes familiares e até, last but not least, a proliferação do alcoolismo e da toxicomania.

Mas, se o diagnóstico e a etiologia da doença são relativamente fáceis, outro tanto não acontece com a terapêutica, que provoca manifestações pontuais desencontradas, quando não antagônicas. E é aí, precisamente, que as dificuldades surgem – e se agigantam.

Não andaremos muito longe da verdade se afirmarmos que a solução do gravíssimo problema passa por duas áreas vitais: a econômica e a educacional. Não há dúvida que são as carências econômicas e as deficiências educacionais que estão na raiz da violência e da criminalidade, esse látegos terríveis que fustigam as espáduas de uma sociedade em transe. E é justamente para essas duas áreas que devem se voltar com urgência os esforços governamentais. Uma coisa é certa: não será com paliativos e emolientes, analgésicos e anestésicos, que deteremos a progressão insidiosa do câncer da violência no seio do organismo social.

Urge combater os exércitos que atacam a sociedade quase indefesa. Começando por desarmá-los, por eliminar as razões da própria luta. Só assim o ideal maior da tranqüilidade e da paz será atingido pela sociedade brasileira. Uma sociedade basicamente pacífica e generosa que exorciza com vigor todas as formas de violência, esse espectro demoníaco fundamentalmente antisocial. Anti-humano. É imperiosa a sua erradicação. Quae sera tamen. Antes que seja tarde. Afinal, a “estirpe de Caim” não constitui uma fatalidade irremediável.

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