A discriminação do obeso

Algumas candidatas aprovadas nas duas primeiras fases do concurso de acesso ao magistério da rede estadual paulista foram julgadas inabilitadas no exame médico e impedidas de assumir o cargo, em razão da obesidade. A notícia, de plano, causa certa comoção social, pois até então gordos e magros dividiam os mesmos espaços e eram titulares dos mesmos direitos, pela isonomia consagrada na Constituição.

Estudos da Organização Mundial de Saúde, que elegeu a obesidade como a doença do século XXI, revelam que 30% da população mundial sofre com sobrepeso e obesidade e que um adolescente nestas condições tem mais de 70% de chance de se tornar um adulto obeso. E este mesmo órgão, que definiu o anoréxico como o portador do IMC igual ou inferior a 18, classificou o obeso como o portador do IMC igual ou maior a 30. Para se chegar ao peso permitido, basta tomar a altura e multiplicar por ela mesma. Em seguida, divida o peso pelo resultado da primeira operação.

Da mesma forma que a anorexia, o excesso de peso provoca problemas graves para a saúde, pois, a exemplo do que acontece nos EUA, país que lidera o ranking do tecido adiposo, a população brasileira se alimenta de produtos ricos em gordura e carboidrato, que ficam alojados no organismo. O crescimento desordenado da população obesa atinge graus de morbidade e passa a ser um problema de saúde pública, que deve acudir as doenças decorrentes da obesidade mórbida, tais como: cardiovasculares, diabetes, câncer, hepatite, apneia do sono, estresse e outras.

Todo indivíduo sabe que o controle do peso é um fator importante para gozar de boa saúde. Já foi a época do Renascentismo onde a beleza feminina era mais roliça, conforme se vê da Mona Lisa de Leonardo da Vinci. Hoje, a beleza toma uma forma mais esquálida onde a magreza deve prevalecer. Porém, não se pode levar a obesidade a ponto tão extremo de impedir o candidato aprovado em concurso público de assumir o cargo. A avaliação não é da massa corporal e sim da competência daquele considerado habilitado.

Trata-se de notório preconceito e uma forma indesejável de discriminação, consistente na ofensa ao princípio da isonomia, pois considera desiguais pessoas portadoras de IMC acima do referendado. O óbice afeta a garantia de exercer o trabalho, que será proibitivo para tais pessoas. Critério totalmente injusto, além do que, não se pode projetar que, futuramente, o profissional apresentará problemas de saúde que o afastará das salas de aulas. Muitos magros também são acometidos por doenças e vivem de reiteradas licenças médicas. O que se nota é que, se de um lado levanta a voz da inclusão social, com a intenção de pacificar o convívio entre as pessoas, de outro brada o coro divergente.

Busca-se, no início deste século, uma nova política global que garanta saúde para todos. Vários documentos foram firmados neste sentido, dentre eles: Carta de Ottawa( Canadá, 1986); Declaração de Adelaide (Austrália, 1988); Declaração de Sundsvall (Suécia, 1991); Declaração de Bogotá (Colômbia, 1992); Declaração de Helsinki (Genebra, 1996) Declaração do México, 2000) e Declaração Universal Sobre Bioética e Direitos Humanos, (Unesco, 2005).

O artigo 24, letra ‘c’ da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, assim determina:

“Os Estados devem respeitar e promover a solidariedade entre Estados, bem como entre indivíduos, famílias, grupos e comunidades, com atenção especial para aqueles tornados vulneráveis por doença ou incapacidade ou por outras condições individuais, sociais ou ambientais e aqueles indivíduos com maior limita&cce,dil;ão de recursos”.

Interessante e pertinente o pensamento de H. TRISTAM ENGELHARDT, JR. [1], quando observa que a própria ideia que fazemos de nós mesmos como entidades racionais autoconscientes exige que nos tratemos como agentes morais, como pessoas, como conhecedores, não como entidades puramente causadas. O foco direciona-se para a pessoa e não para o ser humano. O ser humano é aquele que se distingue por suas peculiaridades biológicas com os primatas (gibão, orangotango, chipanzé, gorila e homem), pelo menos na concepção de THOMAS HUXLEY, que liderou a discussão explícita sobre as origens do homem, em sua obra Evidence as to Man’s Place in Nature (1863). O psicólogo ERICH FROMM, trilhando também o árduo caminho da busca dos ancestrais, afirmou que “entre todos os animais, somente o homem tem sua própria existência como um problema a ser resolvido”. Pessoa, o homo sapiens, é o dotado de racionalidade, autoconsciente, com capacidade de desempenhar um papel na comunidade moral. A dignidade da pessoa humana atinge diretamente a pessoa humana. Os fetos, os deficientes mentais e aqueles que se encontram em coma, sem possibilidade de recuperação, são seres humanos, mas não pessoas.

“Reivindicando a saúde como direito, salienta com toda propriedade FRANCESCO D’AGOSTINO, o sujeito reivindica, em última análise, o direito de ser reconhecido em sua própria identidade, como direito que se fundamenta não na natureza, mas na relacionalidade: reconhecendo a saúde como direito humano fundamental, o ordenamento jurídico (a partir do ordenamento jurídico internacional) reconhece e acata a comum e igual subjetividade de todos os seres humanos” [2].

Se o Estado pretende, na esfera de seus objetivos sociais, ditar regras específicas a respeito da saúde pública, notadamente com medidas proibitivas aos obesos, deve desenvolver programas de proteção à saúde dessa nova categoria, orientando-a a conter o controle de seu peso, com políticas claras de nutrição saudável e balanceada, além de possibilitar com maior frequência o acesso à cirurgia bariátrica, mais conhecida como redutora de estômago. Cria-se, desta forma, para o Estado-providência, outra proteção e agora relacionada com o fantasma da obesidade que ronda o país. Aí sim fica justificada a intromissão estatal nesta área de intimidade pessoal.

O governo americano publicou uma cartilha com várias recomendações aos obesos, dentre elas a redução do consumo de sal, comer modicamente, ingerir mais frutas e verduras, substituir refrigerantes por água e optar por alimentos integrais, além da indispensável atividade física e o conhecimento dos conteúdos de calorias, gorduras e açúcares que devem constar no rótulo dos alimentos e bebidas.

O gozo da boa saúde, prudentemente recomendado pelo Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo, que será comprovado pela inspeção realizada pelo órgão médico oficial, não pode erigir a obesidade como inaptidão absoluta para o exercício do cargo do magistério. Se assim for, o obeso será considerado um doente e outra opção não se apresenta a não ser a aposentadoria por invalidez, com mais ônus ainda ao Estado. Cai por terra, desta forma, a igualdade que deve prevalecer entre as pessoas, sem distinção de qualquer natureza e fica prejudicado o predicado da dignidade, que é o apogeu perseguido pelo legislador constitucional.

Na câmara dos Deputados tramita o PL 122 de 2006, que propõe a criminalização da homofobia, que compreende a liberdade de orientação sexual e identidade de gênero. O tipo incriminador é lançado nos mesmos moldes da discriminação de raça, cor, sexo, gênero, etnia, procedência nacional e religião, culminando pena de reclusão. Se o cidadão tiver determinada orientação sexual e for obeso, será duplamente discriminado.

O fato, embora isolado ainda, faz lembrar “O Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, que abrigava somente as pessoas perfeitas, nascidas de espermas e óvulos perfeitos, com saúde ditada pela aceitabilidade do Estado, em sua definição do bem-estar social, numa sociedade organizada por castas, onde às superiores era reservado um trabalho de relevância soci,al e às inferiores a mais banal tarefa.

Afinal, o Ronaldo Fenômeno, mesmo com o IMC acima do permitido, muitas vezes com dificuldade para fazer uma jogada que exigia arrancada e velocidade, era titular absoluto da camisa 9 do Corinthians e frustrava o sonho de qualquer outro atacante, por mais magro que fosse, de substituí-lo. Pelo menos é o que dizia o técnico da agremiação esportiva.

Notas:

[1] É o pensamento exarado no livro Fundamentos da Bioética, Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2004.

[2] Bioética-segundo o enfoque da filosofia do Direito-Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Editora Unisinos, 2006, p.310.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior é Promotor de Justiça aposentado SP. Mestre em Direito Público. Doutor em Ciências da Saúde. Doutorando em Direito público. Pós-doutorando em Ciências da Saúde. Reitor do Centro Universitário do Norte Paulista. Advogado. Professor de Processo Penal, biodireito e bioética.

Voltar ao topo