A curatela processual penal continua em vigor

Algumas vozes esparsas, vêm, já de algum tempo, apregoando que o artigo 5.º do novo Código Civil, revogou de vez a curatela processual penal posta nos artigos 15, 262 e 449 do Código de Processo Penal, os quais determinam que, tanto na fase do inquérito, como na fase processual, ao menor de 21 anos e maior de 18 anos, deve ser nomeado curador, sob pena de nulidade absoluta, por força dos artigos 564, III, ‘c’, e 572, ambos do Código de Processo Penal.

Sem se darem ao trabalho de apresentar qualquer fundamentação, essas vozes apregoam a revogação desse meio de defesa, com base nenhuma, e com perigosas conseqüências para o direito de defesa na área penal, em que, a busca da verdade material, tem sido um mito, além de que a presunção de culpa tem sido a prática cotidiana recaindo o ônus da prova sempre sobre o acusado.

Os arautos da revogação da curatela processual penal, à míngua de quaisquer argumentos, repetem sem cessar as duas afirmações seguintes:

Primeira: “Que a evolução da sociedade evidencia a desnecessidade de TUTELAR o maior de 18 anos e menor de 21 anos, com as cautelas antes exigidas pela sua pretensa inexperiência e ingenuidade.”

Logo de saída, misturam-se institutos diferentes, pois confunde-se TUTELA com CURATELA.

Tutela é proteção reservada exclusivamente a menores privados dos pais, enquanto que curatela é destinada a qualquer idade, não importando se o curatelado tem 40, 70, 80 anos, ou mais, e, os pais são os primeiros indicados para o exercício da curatela.

Em segundo lugar, dizer que o maior de 18 anos, hoje em dia, está preparado para todos os atos da vida civil e penal, é afirmação que esbarra de saída com o Estatuto das Armas, o qual, no artigo 28, estabelece que só maiores de 25 anos é que podem adquirir armas de fogo.

A imaturidade dos jovens é um fato comprovado pelos milhões de jovens que concluem o ensino médio nas escolas públicas, e não são capazes de ler e entender sequer uma notícia de jornal.

As reprovações nos exames de Ordem da OAB comprovam que, até os bacharéis de Direito, estão despreparados, e até eles necessitam de curador no processo penal.

Portanto, a pretendida maturidade dos jovens não existe, e nem pode ser estabelecida, quer por lei, quer por decreto.

A segunda afirmação que os arautos da revogação apregoam está no já mencionado artigo 5º do novo Código Civil.

Afirmam, mas não provam nada e nem convencem a ninguém, pois não se embasam em nada, a não ser na vontade de seus arautos.

A revogação de leis, no Brasil, não ocorre por mero desejo ou capricho de quem quer que seja.

A revogação de leis em nosso país ocorre, se e somente se, estiverem presentes os requisitos legais para essa revogação, e esses requisitos legais são aqueles postos pela Lei das Leis.

A Lei das Leis é a Lei de Introdução ao Código Civil, Lei n.º 4.657/1942, que diz:

Artigo 2.º – Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou a revogue.

§ 1.º – A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a a lei anterior.

§ 2.º – A lei nova que estabeleça disposições gerais ou específicas a par das já existentes, não revoga e nem modifica a lei anterior.

O novo Código Civil diz:

Artigo 5.º – A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.

O Código de Processo Penal diz:

Artigo 15 – Se o indiciado for menor, ser-lhe-á nomeado curador pela autoridade policial.

Artigo 262 – Ao acusado menor dar-se-á curador.

Artigo 449 – Apregoado o réu, e comparecendo, perguntar-lhe-á o juiz o nome, a idade e se tem advogado, nomeando-lhe curador, se for menor e não o tiver, e, defensor, se maior. Em tal hipótese, o julgamento será adiado para o primeiro dia desimpedido.

Artigo 564 – A nulidade ocorrerá nos seguintes casos:

III- por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:

‘c’- A NOMEAÇÃO DE CURADOR AO MENOR DE 21 (vinte e um) ANOS.

O imbróglio só existe para aqueles que se recusam a discernir o que salta aos olhos de todos:

CURATELA é uma coisa, e TUTELA é outra.

O requisito para a curatela é a imaturidade, comprovada pela interdição, ou pela presunção da lei, e independe da idade, sendo os pais os principais curadores.

O requisito para a tutela é a idade, independente da maturidade.

Se Amadeus Mozart, que compunha sinfonias aos quatro anos de idade, ficasse órfão, a ele teria sido dado TUTOR, sendo impossível que os pais sejam tutores, pois é a falta ou o impedimento de ambos os pais que enseja o surgimento da tutela.

A Constituição Federal IMPEDE que um menor de 30 anos de idade seja Governador de Estado, e que um menor de 35 anos de idade seja Presidente da República, ou Senador, porque presume que, antes dessas idades, as pessoas ainda não têm maturidade para exercer tais cargos (CF-art.14,º 3.º, VI, ‘a’ e ‘b’).

O novo Código Civil por acaso derrogou esses dispositivos constitucionais, uma vez que a maioridade passou a ser 18 anos? E, a partir de agora, qualquer maior de 18 anos pode ser Presidente da República?

É claro que não derrogou.

Primeiro, porque 18 anos é maioridade para todos os atos da vida civil, e não para atos da vida política.

Segundo, porque a Constituição Federal é hierarquicamente superior ao Código Civil, que é lei federal.

Mas, se a questão é de hierarquia, a Constituição Federal, ao estabelecer a CAPACIDADE para ser ELEITOR ao brasileiro com 16 anos de idade (CF-art. 14, º 1.º, II, ‘c’), por força dessa lei maior, ficaram derrogados o artigo 27 do Código Penal, e o artigo 228 da própria Constituição Federal, em razão da incompatibilidade dessas duas normas constitucionais?

A resposta é NÃO.

Maturidade para a vida política, isto é, para ser eleitor aos 16 anos, não eqüivale a maturidade penal. Portanto, esse dispositivo constitucional não derrogou o artigo 27 do Código Penal, determinando a imputabilidade penal aos 16 anos.

Por outro lado, a presença do artigo 288 da CF serve para mostrar a diferença entre MATURIDADE PARA VOTAR, aos 16 anos, e MATURIDADE PARA SER RESPONSÁVEL, penalmente, aos 18 anos.

Se não há incompatibilidade dentro da própria Constituição Federal: 16 anos para votar e 18 para ser imputável penalmente, então não existe incompatibilidade entre a maioridade civil, aos 18 anos, e a processual penal, aos 21 anos, inclusive porque estamos falando de CURATELA.

Repita-se: CURATELA.

Se restasse uma única dúvida sobre essa questão, essa dúvida foi afastada pelo próprio legislador, que preocupado com a ausência de defesa no processo penal editou a lei 10.792/2003 e, por meio dessa leis, fez o seguinte:

a) Instituiu a obrigatoriedade da presença de advogado ao interrogatório (art. 185-CPP);

b) Instituiu o direito do acusado de não produzir provas contra si mesmo (art. 186 e parágrafo único-CPP);

c) Instituiu o direito de intervenção do advogado na defesa do acusado (art. 188-CPP);

d) Revogou a necessidade de curador no interrogatório por entender que nessa fase não há ainda o contraditório

e) Manteve a obrigatoriedade de curador no artigo 262-CPP;

f) Manteve a obrigatoriedade de curador também no artigo 449-CPP;

g) Definiu que o curador é necessário para os menores de 21 anos (art. 564, III, ‘c’-CPP).

A lei 10.792/2003 é posterior ao novo Código Civil, lei 10.406/2002.

Portanto, se essa lei manteve os artigos 15, 262, 449 e 564, III, ‘c’ do Código de Processo Penal, é porque entendeu que a presença obrigatória do curador é garantia de defesa inafastável.

Para completar, dois alertas se fazem necessários e urgentes.

O primeiro deles é que, não tendo o novo Código Civil EXPRESSAMENTE revogado a curatela processual penal, então a advertência de J. M. de Carvalho Santos se impõe, através dos dois princípios basilares que se seguem:

1.º) “A REVOGAÇÃO TÁCITA NÃO SE PRESUME; NA DÚVIDA, SE JULGARÁ UMA LEI COMPATÍVEL COM A OUTRA”;

2.º) “A INCOMPATIBILIDADE DEVE SER FORMAL, DE TAL MANEIRA QUE A EXECUÇÃO DA LEI SEJA IMPOSSÍVEL SEM DESTRUIR A ANTIGA”.

Se a aplicação do artigo 28 do Estatuto das Armas, que impede a compra de armas de fogo por menor de 25 anos não inviabiliza a aplicação do artigo 5.º do novo Código Civil, então, é evidente que a curatela, prevista em todas as fases do processo penal, não tornam impossível a aplicação do referido artigo 5.º do novo Código Civil.

O segundo alerta é aquele posto na antiga Lei de Introdução ao Código Civil, e que dizia:

Artigo 6.º- A LEI QUE RESTRINGE DIREITOS SÓ ABRANGE OS CASOS QUE ESPECIFICA.

Esse artigo traduz princípio de tamanha relevância, e de tal universalidade, e se revela tão notório e tão óbvio que, mantê-lo na nova Introdução ao Código Civil, seria redundância descabida.

É claro que, para restringir direitos, a revogação tem que ser EXPRESSA e ESPECÍFICA.

A Curatela Processual Penal é uma garantia de defesa, e não pode ser restringida.

Um jovem de 19 anos é preso num sábado à noite e, não dispondo a lei da obrigatoriedade da presença de advogado, ficará à mercê de policiais violentos, e sem defesa alguma.

Como restringir esse direito de defesa, sem lei específica, e por mera revogação tácita?!

A resposta é: impossível tal derrogação!

Para arremate final, fica aqui o desafio aos partidários da restrição de direitos dos jovens.

O desafio é o seguinte:

O novo Código Civil acrescentou um dispositivo inexistente no Código Civil anterior, que é:

Artigo 215 – A CONFISSÃO É IRRETRATÁVEL.

Porém, o Código de Processo Penal, diz:

Artigo 200 – A CONFISSÃO É RETRATÁVEL.

A pergunta é: o artigo 215 do novo Código Civil revogou o artigo 200 do Código de Processo Penal, de modo que, se o acusado confessou na delegacia, então essa confissão é irretratável?

A resposta é outro absoluto NÃO! Não revoga.

A aplicação da lei que AMPLIA DIREITOS essa sim, essa é obrigatória.

Conclusão: por tudo o que foi acima exposto não resta a menor dúvida de que a Curatela Processual Penal, posta nos artigos 15, 262 e 449 do Código de Processo Penal, estão em pleno vigor e, as autoridades que as não cumprirem deverão ser responsabilizadas administrativa, penal e civilmente, sendo, o ato que negou a curatela, inquinado de nulidade insanável.

Além disso, como curador, jamais deverá ser aceito o defensor que, na fase do inquérito nem é obrigatório.

É a Lei quem determina quem deve ser curador. E, essa lei, é justamente o novo Código Civil, que diz:

Artigo 1.774 – Aplicam-se à curatela as disposições concernentes à tutela, com as modificações dos artigos seguintes.

Artigo 1.775- O cônjuge ou companheiro, não separado judicialmente ou de fato, é, de direito, curador do outro, quando interdito.

º 1.º- Na falta do cônjuge ou companheiro, é curador legítimo o pai ou a mãe; na falta destes, o descendente que se demonstrar mais apto.

º 2.º – Entre os descendentes, os mais próximos precedem os mais remotos.

Dez mil, isso mesmo, dez mil, são os policiais militares envolvidos com a prática de crimes no Rio de Janeiro.

Em São Paulo são milhares os policiais civis e militares envolvidos com roubo de carros, drogas, roubo de cargas, tudo conforme vasta cobertura dos órgãos de imprensa.

Como, então, diante dessa realidade, essa sim, uma realidade, aceitar que se restrinjam direitos de defesa?!

A resposta é: jamais!

Os revogadores, escudados pelo silêncio dos doutrinadores, esgrimem suas teses sem se darem ao mínimo trabalho de fundamentar, justificar, e dizem que os artigos 15, 262, 449, 564, III, ‘c’, e 631, do CPP, estão todos revogados, porque o artigo 5.º do novo Código Civil estabeleceu a maioridade em 18 anos! E pronto! Num posicionamento professoral tão revoltante, que causa indignação até nos mais moderados operadores do mundo jurídico!

E o que é pior: essa falácia violentadora das garantias constitucionais, e castradora de direitos inalienáveis, está em manuais que podem, sim, formar crenças e mentalidades em futuros juizes, promotores e delegados, com o que irá se perpetuando aquele autoritarismo tirânico descrito por Raimundo Faoro em “Os Donos do Poder”.

Por isso, como golpe de misericórdia contra essa perigosa corrente, transcrevo o artigo 2043 do novo Código Civil:

Artigo 2.043 – Até que por outra forma se disciplinem, continuam em vigor as disposições de natureza processual, administrativa ou penal, constantes de leis cujos preceitos de natureza civil hajam sido incorporados a este Código.

E transcrevo o fulminante comentário da Professora Maria Helena Diniz, esta sim, uma Doutrinadora, e não mera divulgadora. Doutrinadora que fundamenta o que diz.

Eis o breve comentário:

“Vigência de normas processuais, administrativas e penais. O novo Código Civil, acertadamente, contém, em sua maior parte, normas gerais, de caráter substantivo, que procuram definir as instituições jurídicas, por ele regidas, ressaltando seus fins e efeitos, deixando os pormenores às leis especiais, bem como a disciplina de fatos polêmicos engendrados, pelo avanço tecnológico, ou de situações que exigem construção doutrinária ou jurisprudencial para delinear seus contornos. Ficou adstrito às matérias próprias do direito civil e empresarial, deixou até mesmo de lado as normas adjetivas, abarcando tão-somente as intimamente relacionadas com os temas de direito material por ele tratados. Continuam tendo vigor as disposições de natureza processual, administrativa ou penal contidas em normas, cujos preceitos de natureza civil foram incorporados ao novo Código Civil, até que por outra forma sejam disciplinadas. Nada obsta, juridicamente, a que leis adjetivas, administrativas e penais continuem vigorando e incidindo nas questões intimamente relacionadas com o direito civil, por serem de ordem pública, sendo reflexos da ordem jurídica, que as reconhece, permitindo sua incidência, apesar de anteriores à Lei n.º 10.406/2002.” (Código Civil Anotado, Saraiva, 2003, p. 1.398)

E tem mais: para destruir de vez as pretensões da corrente revogadora. Esse mais constitui a jurisprudência prévia, destruidora das falaciosas posturas dos revogadores.

Nos dias 11, 12 e 13 de setembro de 2002, a JORNADA DE DIREITO CIVIL promovida pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ) do Conselho de Justiça Federal, estabeleceu que continua em vigor o disposto no artigo 16, inciso I, da Lei Previdenciária n.º 8.213/91, que diz:

“SEÇÃO II – DOS DEPENDENTES”

Artigo 16 – São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:

Inciso I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos de idade.

Portanto, a idade de 21 anos fica mantida.

Vendo esse ataque brutal contra garantias mínimas dos jovens, jovens pobres, é impossível deixar de trazer de volta o doloroso legado de Machado de Assis, em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”:

“Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que sai quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”

Wilson Rodolpho de Oliveira

é advogado e professor.

advprof@terra.com.br

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