A captura de Saddam Hussein: reflexões sob a ótica do Direito e relações internacionais

A prisão do ex-ditador do Iraque representou uma importante cartada do jogo liderado pelos EUA, contra o Iraque. O descarte do Ás de Espada iraquiano representa uma conquista do presente, que revela estratégias de jogadas anteriores mas que também reserva acontecimentos incertos para o futuro, quando deverá se dar o verdadeiro fim da batalha.

O passado

A imagem da captura de Saddam foi veiculada à exaustão em todo o mundo, gerando muitas comemorações nos EUA, por parte da população e dos governantes. Mas os motivos que levaram à invasão do Iraque não eram as armas de destruição em massa, que causavam uma ameaça à paz dos norte-americanos? Então, o que significam tais manifestações pela queda do ditador? Ninguém duvida que Saddam Hussein era o símbolo maior do Iraque, mas a felicidade gerada por sua prisão representa para o governo dos EUA muito mais do que a esperança de paz e liberdade para o povo iraquiano. Ela demonstra que os verdadeiros interesses da invasão iniciada em 20 de março de 2003 estavam na destituição de um comandante de personalidade forte, que não se curvava às determinações de Washington, com vistas a substituí-lo por alguém de sua confiança. Também mostra o interesse norte-americano pela propriedade e posse das riquezas naturais locais, principalmente o petróleo; pela colocação de bases americanas numa região de difícil acesso, em clara decisão de estratégia geopolítica, pela geração de demanda na indústria bélica norte-americana, estreitamente ligada ao Presidente Bush, além da conciliação de interesses de companhias que contribuíram financeiramente em sua campanha eleitoral, no estágio da reconstrução do país. E tudo isso num desrespeito sem precedentes às Nações Unidas e numa afronta às normas de Direito Internacional, totalmente desconsideradas em favor de uma expansão unilateral dos poderes dos EUA.

O presente

Hoje, Saddam está desmobilizado após ter sido preso numa situação patética, sem oferecer qualquer protesto ou resistência. Demonstra sua covardia, que nunca havia sido trazida à tona porque governava através do medo e terror que impunha a seus súditos. Apesar de ter dizimado milhares de pessoas opositoras a seu regime ditatorial, não teve coragem de suicidar-se. Revelou-se mais uma vez muito distante dos árabes, cuja bravura é marca característica de suas reivindicações.

Sua captura, enquanto fim, é positiva e pode agir de forma a constranger outros ditadores, inclusive do mundo árabe, e limitar atitudes sanguinárias, realizadas por regimes que cometem sistematicamente graves violações dos direitos humanos. No entanto, os meios para se chegar a tal fim foram completamente equivocados, tendo em vista que a deposição deveria ter sido feita de modo pacífico e consciente, pelo povo iraquiano, com o auxílio da ONU, já que sozinha a população não conseguiria opor-se ao ditador.

O futuro

Nos EUA, a captura de Saddam deve influenciar fortemente as eleições presidenciais do ano 2004, favorecendo a reeleição de George W. Bush e dificultando a argumentação dos democratas, tendo em vista a repercussão do acontecimento como uma vitória não apenas dos “EUA contra o Iraque”, mas como a certeira opção feita pelos republicanos – e seus falcões – na condução de suas relações internacionais. A vinculação dos acontecimentos com o sentimental assunto da guerra contra o terror, depois dos atentados de onze de setembro, parece ser inevitável.

No Iraque, a prisão de Saddam representa o fim de uma das vertentes da resistência: aquela por ele liderada e realizada por componentes de seu antigo governo. Resta saber se islâmicos extremistas que entraram no país no conturbado período pós-guerra e os movimentos de guerrilha de iraquianos contrários à ocupação anglo-americana intimidar-se-ão com a captura do ex-ditador, diminuindo a violência que se instaurou no país.

Quanto a Saddam Hussein, pessoalmente, ele deve ser considerado um prisioneiro de guerra, recebendo o tratamento estabelecido pelo Direito Internacional Humanitário, com garantias de não ser submetido a tortura nem outros tratamentos cruéis ou degradantes, livre de exposição pública, com direito de ser julgado por um tribunal competente e visitado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Tudo o que ele nunca propiciou aos iraquianos mas que configuram erros que não devem jamais ser reproduzidos.

Quanto ao seu julgamento, o ideal seria realizá-lo através de um tribunal local, devidamente constituído em conformidade com a lei iraquiana e formado por iraquianos devidamente investidos nas funções concernentes. No entanto, se o Iraque é um país sem leis e governado por um Conselho imposto pelos EUA, tais requisitos não podem ser cumpridos. Portanto, diante da realidade posta, o correto é a realização de um julgamento por uma Corte Internacional, organizada pelas Nações Unidas, nos moldes de situações similares anteriores. A aceitação desse tribunal internacional seria uma excelente oportunidade para os EUA compensarem a enorme dívida que têm com a busca da justiça e o fim da impunidade no plano internacional, haja vista seu sistemático boicote ao recém-criado Tribunal Penal Internacional. Se os motivos que geraram a guerra foram os interesses próprios dos EUA e pessoais de seu presidente, esse é o momento para se iniciar uma nova fase do jogo: a preocupação com os interesses dos iraquianos.

Tatyana Scheila Friedrich

é mestre/UFPR, professora de Direito Internacional da UFPR e das FIC.

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