A ação do Fisco e a Constituição

Foi atabalhoada a reação do governo à decisão do Congresso de não aprovar a prorrogação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). Com alíquota de 0,38%, rendia cerca de R$ 40 bilhões por ano aos cofres públicos e servia, ao mesmo tempo, como instrumento fiscalizador da Receita Federal para flagrar sonegadores de tributos. Várias ações contra esse poder fiscalizador nunca foram julgadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O assunto é polêmico e, do ponto de vista legal, por implicar a quebra do sigilo bancário, é mais grave do que o próprio aumento de impostos decretado pela equipe econômica para compensar o fim da CPMF. A elevação do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), já em vigor, deve render R$ 8 bilhões. E a alta da Contribuição Provisória sobre o Lucro Líquido (CSLL) para as instituições financeiras, que dependerá da aprovação do Congresso, mais R$ 2 bilhões, segundo o governo.

Em dezembro, após a derrubada da CPMF, o governo, para garantir a aprovação pelo Senado da DRU (Desvinculação de Receitas da União), prometera que nenhuma medida de compensação da contribuição seria tomada sem negociações prévias. Mas, antes mesmo do apagar das luzes de 2007, no dia 27 de dezembro, a Receita Federal baixou a Instrução Normativa 802, para regulamentar a prestação de informações a ser fornecida pelos bancos. No início de janeiro, sem aviso prévio, veio o aumento dos impostos. E o ministro da Fazenda, Guido Mantega, sem nenhuma cerimônia, disse que a promessa feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva tinha como prazo de validade o final do ano.

Pela IN 802, que nada mais é do que verdadeira quebra do sigilo bancário do contribuinte diretamente pelo Fisco, os bancos são obrigados a repassar à Receita os dados das pessoas físicas que movimentarem, por semestre, mais de R$ 5.000,00 em conta corrente ou poupança. A mesma regra vale para as empresas que movimentarem mais de R$ 10.000,00 por semestre.

Tal possibilidade altera profundamente o ordenamento jurídico brasileiro, por esbarrar com princípios resguardados na Constituição, em seu artigo 5.º, tais como o direito à privacidade e à intimidade. A Constituição Federal, de forma inédita e inovadora, consagrou a inviolabilidade de dados como um dos direitos fundamentais do cidadão, dispondo no artigo 5.º, XII: ?É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal?.

Discute-se na doutrina acerca da localização do sigilo bancário no bojo da Constituição Federal. O STF tem entendido que o sigilo bancário constitui expressão do direito da intimidade e privacidade, tendo por fundamento o inciso X do artigo 5.º da Constituição: ?São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação?.

Diante dessas fundamentações, é possível afirmar que, se a IN 802 chegar ao STF, deverá ser julgada inconstitucional, uma vez que o governo não pode obrigar as instituições financeiras a repassarem semestralmente as informações sobre a movimentação financeira de pessoas físicas e jurídicas.

A IN 802 é inspirada na Lei Complementar 105, aprovada em 2001, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Na época, várias ações contra essa lei foram movidas pelas confederações nacionais da Indústria e do Comércio e pelo PSL, por embutir a possibilidade de quebra do sigilo bancário através da CPMF. Até hoje, não há decisão do STF sobre nenhuma dessas ações. Nesses sete anos, houve a troca de oito dos onze ministros do Supremo e é impossível prever como o caso da IN 802 será julgado. A relatoria das antigas ações contra a Lei 105, que estava a cargo do ministro Sepúlveda Pertence (ele deixou a Corte em agosto de 2007), está agora nas mãos do ministro Carlos Alberto Menezes Direito.

A grande maioria dos contribuintes ainda não tomou consciência da importância da IN 802, baixada em época de férias. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) decide, no próximo dia 18 de fevereiro, se entra no STF com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra a nova medida da Receita Federal. No momento, parece unânime a visão de que ela permite a quebra do sigilo bancário. Os políticos de oposição também reagiram. O deputado federal Arnaldo Jardim (PPS-SP) apresentou requerimento em que pede a convocação da Comissão Representativa do Congresso e a sustação do ato da Receita. Segundo o parlamentar, a IN 802 exorbita do poder de regulamentar.

Uma sinalização clara de que o sigilo dos dados deve prevalecer veio de Marco Aurélio Mello, ministro do STF e presidente do TSE. Questionado sobre a IN 802, afirmou: Se o Supremo for provocado, deverá se manifestar contrário. Se quiserem, modifiquem a Constituição, mas, enquanto estiver em vigor, será respeitada. É o preço da democracia.

Piero Monteiro Quintanilha é advogado tributarista do escritório Peixoto e Cury Advogados. pmq@peixotoecury.com.br

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