30 anos da Lei do Divórcio: o remédio para as doenças do casamento

Estudioso dos palpitantes temas que envolvem as relações familiares mantidas entre as pessoas e que, a partir da mais remota antiguidade, definiram as bases de um dinâmico ramo do Direito Privado o Direito de Família hoje me volto ao passado, como testemunha itinerante de uma parte da história da instituição do divórcio no Brasil. Assim, me ponho sobre alguns alfarrábios memoráveis e chego ao hoje, num traço rápido da retrospectiva de um conjunto de normas legislativas, éticas e morais, que costumo definir como direitos e deveres da família moderna. Família que aí está às inteiras, e cuja estabilidade se fixou, inegavelmente, a partir da Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977, nascida com o advento da Emenda Constitucional n.º 9, de 28 de junho de 1977.

O polêmico instituto jurídico, ao longo dos últimos 30 anos, buscando-se atender aos relevantes interesses sociais, dos cônjuges, dos filhos e da família, sob a proteção do Estado, evoluiu após a Constituição Federal de 1988 (art. 226 § 6.º) com a edição da Lei 7.841, de 17 de outubro de 1989, da Lei 8.408, de 13 de fevereiro de 1992, e da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Novo Código Civil, arts. 1.571, IV, 1.579, 1.580, 1.581, 1.582, 1.583, 1.584), que passaram a definir a matéria em comento. O legislador não podia ficar inerte nem indiferente à marcha da História, diante de tantas mudanças impostas aos grupos familiares. Daí, muitas as novidades e avanços, que frise-se – não conseguem acompanhar a célere transformação do Direito de Família, ao lado de repetições aferradas a valores ultrapassados, que não refletem nem de longe a realidade que nos cerca.

Porém, desde que a introdução do divórcio no Brasil percorreu uma trilha de quase um século, mesmo antes do casamento ter sido proclamado indissolúvel pela Carta Política de 1934, pois a luta começou com a Constituinte de 1891 e pelo projeto de lei aprovado em primeira votação, no Senado, em 1900, admita-se que falta pouco para se atingir os novos e seguros caminhos que levarão à composição das relações socioafetivas e conflituosas da família moderna, ainda que pelas luzes da doutrina e da jurisprudência, como fontes naturais da ordem jurídica. O incansável empenho dos Senadores NELSON CARNEIRO e ACCIOLY FILHO merece louvor e aí está a balizar uma vitória sofrida, na persistente luta pelo divórcio, que passou a vigorar há três décadas, como o remédio para as doenças do casamento.

Desde o advento da Lei 6.515/77, o instituto da dissolução do casamento pelo divórcio passou por algumas transformações, de modo a atender os reclamos das pessoas e a realidade social. Lembre-se que, por pura estratégia do relator do projeto de lei, no processo legislativo, o divórcio aprovado ficou limitado a uma vez: ?Art.38 O pedido de divórcio, em qualquer dos seus casos, somente poderá ser formulado uma vez.? (revogado expressamente pela Lei 7.841/89), até chegar ao recente projeto de lei aprovado no Congresso Nacional, que vem para desburocratizar a ação de divórcio, Na época, o texto do artigo 38 foi considerado pura excrescência jurídica e causou alarido dentre tratadistas e outros tanto que habitam o cipoal do Judiciário, pois a restrição significava ponto de honra das correntes antidivorcistas, inconformadas com a aprovação do texto regulador do então art. 175 da CF de 1969 (EC n.º 9/1977).

Mas, estrategicamente, foi a única arma do senador ACCIOLY FILHO, autor da Lei do Divórcio, para enfrentar os parlamentares arraigados ?à ética judaico-cristã liberal burguesa do início do século XX, que ainda associava o relacionamento afetivo entre homem e mulher à culpa pelo pecado original? (TEPEDINO, Gustavo, in Temas de Direito Civil, Renovar, 1999), ?que deve ser resgatada a cada dia no sacramento do matrimônio que se torna indissolúvel, mesmo que represente um fardo ou uma farsa para quem o vive? (PITTMAN, Frank, in Mentiras Privadas, Artes Médicas, 1994, citando LACAN, Jacques, in Os complexos familiares, Jorge Zahar, 1984).

E o tímido divórcio à brasileira também se condicionou ao tempo de separação judicial (3 anos) e de separação de fato (5 anos), atendidas as regras inseridas nos arts. 4.º e 5.º, por mútuo consentimento, após 2 anos do casamento, ou por conduta desonrosa ou por qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento e tornem insuportável a vida em comum, além da ruptura da vida em comum por mais de 5 anos sem possibilidade de sua reconstituição e por conta de grave doença mental do cônjuge, que torne impossível a continuação da vida em comum depois de 5 anos de reconhecimento da enfermidade de cura improvável, reprovada a hipótese da doença contagiosa, inserida no projeto originário. Tratava-se dos denominados ?divórcio-sanção?, ?divórcio-falência? e ?divórcio-remédio?, que o legislador aprovou sob inspiração no direito francês. (MARCHESINI JR, Waterloo, in Instituição do Divórcio no Brasil, Juruá, 1978).

Com a promulgação da Carta Política de 1988, por força do Art. 226,

§ 6.º, a Lei do Divórcio foi alterada pelas Leis7.841/89 e 8.408/92 para se adaptar ao texto maior, que soa: ?O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.? Assim, constata-se que o tempo foi suficiente para consolidar o instituto do divórcio, reduzindo-se os prazos antes vigentes, no ímpeto de atender as exigências da família moderna, que conseguiu quebrar velhos tabus e discriminações odiosas, sob o manto de uma nova realidade social, cultural e econômica insculpida num novo Estado de Direito Democrático.

Esse traçado evolutivo, ao longo dos últimos lustros, atingiu o Novo Código Civil, que define o divórcio no seu Art. 1.571, IV, § 1.º e § 2.º, observando-se ainda o Art. 1.572 usque Art. 1.582, donde se introduziram profundas alterações na Lei 6.515/77, ainda que presentes graves retrocessos no chamado Estatuto Familiar, se interpretado o princípio basilar da dignidade da pessoa humana aliado ao principio da igualdade em direitos e obrigações entre homens e mulheres, principalmente na relação conjugal, além do reconhecimento da pluralidade de opções para a formação da família, da não discriminação entre os filhos não importando sua origem, que se somam ao princípio da paternidade responsável e do melhor interesse da criança (Convenção Internacional dos Direitos da Criança, ONU, 1989). O direito codificado retroagiu ao tempo das Ordenações, editando o Art. 1.573, onde, desnecessariamente, arrola seis incisos e um parágrafo para justificar a impossibilidade da vida em comum, que autoriza a separação judicial e o divórcio. A partir do adultério, que foi excluído do Código Penal, até a conduta desonrosa e de outros fatos que tornem impossível a vida em comum, tem-se um rol inútil para motivar o ?divórcio-sanção?, fincado na culpa de um dos cônjuges, afora o ?divórcio-falência? (com prazo reduzido de 5 anos para 1 ano) e o ?divórcio-remédio? (cujo prazo foi reduzido de 5 anos para 2 anos da comprovação da doença mental de cura improvável), previstos na Lei 6.515/77.

Nesse sentido, vale enfatizar a opinião dos doutrinadores contrários ao apontado retrocesso da norma substantiva: ?Exemplo disso é o ressuscitar dos mitos da culpa expressos nos termos do artigo 317 do Código Civil de 1916, revogado pela própria Lei 6.515/77, que dispunha dos motivos a serem considerados quando da avaliação da separação motivadora por culpa de um dos cônjuges. O que lá havia foi repetido integralmente no artigo 1.573, acrescendo-se ainda dois itens: a condenação por crime infamante e uma cláusula geral de má conduta do cônjuge culpado que permitirá ao juiz considerar a possibilidade da separação culposa ou não?. (SOARES, Sônia Barroso Brandão, in O Novo Código Civil Comentado, v.2, Freitas Bastos, 2002). A norma aí está em notório descompasso com a realidade das relações familiares e, por isso, deve ser revogada prontamente,

Espera-se, portanto, que a norma infraconstitucional dê lugar ao princípio maior da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III da CF/88) ao lado da garantia da livre determinação (art. 5.º da CF/88), pois é impossível aceitar-se que se limite o direito de qualquer cidadão casado a não permanecer casado, reconhecendo-se o casamento como vínculo dissolúvel (art.226

§ 6.º da CF/88), sem cogitar da motivação, mas apenas pelo decurso do tempo. Aliás, destaque-se aqui o direito francês e italiano, que aprovam o divórcio exclusivamente por não haver mais condições de se manter a vida em comum, além da hipótese de motivo grave que afete a convivência conjugal e possa resultar em prejuízo para a prole. O que importa, sempre, é a affectio maritalis razão fundamental para manutenção do vínculo conjugal -, prescindido-se da culpa para justificar a separação ou o divórcio.

Autor da primeira obra comentadora da Lei do Divórcio editada no Paraná (Instituição do Divórcio no Brasil, Juruá , 1978), depois de ter sido o patrono no primeiro processo de divórcio consensual homologado no Paraná, em data de 30 de dezembro de 1977, pelo magistrado Desembargador MOACIR GUIMARÃES, então juiz titular da 2.ª Vara de Família de Curitiba, hoje me curvo à dinâmica do direito, na certeza de que só o tempo é capaz de aperfeiçoar as instituições jurídicas. Muitos são os operadores do direito que deram sua inestimável contribuição para o aprimoramento do instituto em análise e creio que muitos outros aí estão a escrever as novas linhas almejadas pelo povo para grandeza da cidadania.

Nessa convicção, encerro este bosquejo em memória dos incansáveis e imortais parlamentares NELSON CARNEIRO e ACCIOLY FILHO pais da Lei do Divórcio – reportando-me ao texto que li, dias atrás, em O GLOBO, que transcrevo para comprovar a apontada dinâmica legislativa em prol do aperfeiçoamento do instituto:

?Prestes a completar 30 anos – o que ocorrerá no dia 26 de dezembro – a Lei do Divórcio pode sofrer importante alteração ainda este ano. Tramita em comissão especial da Câmara a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do deputado Enio Bacci (PDT-RS) que propõe a redução de dois anos para apenas um ano do prazo para qualquer pessoa pedir o divórcio. Apensada a ela, uma proposta do deputado Sérgio Carneiro (PT-BA) avança ainda mais, ao suprimir o instituto da separação judicial e acabar com qualquer prazo para o pedido de divórcio. A PEC deve ir a votação no plenário ainda em 2007. O maior obstáculo à mudança vem do campo religioso. Em audiência pública realizada no dia 10 de outubro, evangélicos e católicos se uniram contra a novidade.

A Constituição proíbe o divórcio direto, de acordo com o parágrafo 6º do artigo 226 do Código Civil. Hoje, quem pensa em se divorciar, tem dois caminhos: entrar com ação de separação judicial e, um ano depois da sentença, convertê-la em divórcio; ou então ficar dois anos separado, de fato, mas casado no papel. Nesse caso, é preciso provar a separação de corpos, com apresentação de testemunhas que responderão a perguntas sobre a situação do casal. Após a comprovação de que não estão mais juntos e, cumprido o prazo, o divórcio é decretado. Os cartórios civis  . A mudança vale para as separações e divórcios consensuais, quando não há filhos menores. Com a medida, segundo o deputado Sérgio Carneiro (PT-BA), autor de uma das propostas, os casais poderão ingressar diretamente com o processo de divórcio na Justiça. ?Hoje as pessoas entram com uma ação de separação judicial, pagando as custas do processo e os honorários de advogados. Um ano depois, devem entrar com um segundo processo, incorrendo nos mesmos gastos para conseguir o divórcio?, explica.

Segundo o parlamentar, a lei vai proporcionar, além de economia financeira, um menor desgaste emocional dos casais envolvidos. Ele explica que atualmente muitos não requerem a separação definitiva para não prolongar a dor e o constrangimento. ?O problema é que os [que são apenas] separados [judicialmente] não podem se casar novamente. Por isso, costumo dizer que esta é uma lei a favor do casamento?,afirma.

Carneiro disse ainda que os casamentos duram, em média, 11,5 anos no Brasil. Além disso, anualmente são registrados 251 mil processos de separação. A mudança na legislação, na opinião do parlamentar, facilitará o trabalho da Defensoria Pública, ?que é quem cuida dos processos de pessoas pobres no país?, além de agilizar e tornar mais econômico o trabalho do Judiciário. A proposta recebeu o aval da comissão oito dias antes do aniversário de 30 anos da aprovação do divórcio no Brasil pelo Congresso Nacional.?

Sabe-se que a Comissão Especial do Divórcio aprovou há pouco o substitutivo do deputado Joseph Bandeira (PT-BA) à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 22/99, do deputado Enio Bacci (PDT-RS). O substitutivo acaba com a figura da separação judicial na legislação brasileira e estabelece que o casamento será dissolvido por divórcio, na forma da lei. Para Bandeira, no entanto,a Constituição não deve entrar em detalhes sobre os procedimentos, que deverão ser tratados em legislação infraconstitucional.

O texto original da PEC 22/99 apenas iguala os prazos necessários para a concessão do divórcio nos casos de separação judicial e de fato. No primeiro, a Constituição prevê a necessidade de aguardar um ano. No segundo caso, o prazo requerido é de dois anos. Na opinião do relator, apesar de a proposta original ter sido importante, porque permitiu a discussão do assunto, era ?muito tímida?.

Se aprovada pelo Congresso Nacional, em votação bicameral, a PEC 22/99 introduzirá profunda alteração no instituto do divórcio, que passará ao rol dos mais evoluídos da atualidade forânea, com maior destaque no direito comparado, prestando-se ao aprimoramento dos direitos e deveres da família moderna, que ainda prescindem de outros instrumentos legais para suprir lacunas definidas por construção doutrinária e jurisprudencial.

Waterloo Marchesini Junior é advogado e jornalista; autor de Instituição do Divórcio no Brasil, Juruá, 1978 / Accioly Filho, o parlamentar e jurista, IOPR, 2001, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Centro de Letras do Paraná. grupowmarchesiniadv@hotmail.com

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