Yukio Mishima era um escritor que sabia morrer

Em novembro fará quarenta anos que Yukio Mishima morreu. Entre os escritores notáveis do século 20, foi quem teve morte mais espetacular. Mishima invadiu um quartel em Tóquio, aprisionou o comandante e intimou os soldados a retomarem tradições milenares. Como não foi levado a sério, disse que ia se suicidar. Como ninguém acreditou, ele se suicidou na frente de todo mundo.

Claro que o suicídio de Mishima não foi um suicidiozinho à toa. Ele cumpriu o ritual do seppuku, também conhecido vulgarmente por harakiri, com o qual os samurais davam fim às suas vidas. Na tradição japonesa é algo heróico. Uma moda nipônica que não pegou mundo afora. Num Japão ocupado por forças americanas e que se esforçava para espantar fantasmas da derrota na Segunda Guerra Mundial, aquilo caiu como um tremendo mal estar. Mishima, parafraseando Getulio Vargas, saiu da vida para entrar na história. Na história literária.

O século 20 teve muitos escritores e alguns com mortes espetaculares. A de Albert Camus, exatamente às 13h55 do dia 4 de janeiro de 1960, foi involuntariamente espetacular. O carro em que viajava bateu com tanta violência que ele morreu e o relógio travou no ato. A do escritor peruano Manuel Scorza ocorreu quando o avião em que viajava bateu em 27 de novembro de 1983 contra uma colina em Madri. Como são muitos escritores, teve mortes para todos os gostos.

Alguns morreram de tanto beber, como é o caso de F. Scott Fitzgerald, William Faulkner e Dashiel Hammet, para não espichar a lista que ainda tem Dylan Thomas. Jack Kerouac bebeu tanto que em 21 de novembro de 1969 morreu aos 47 anos de hemorragia, resultado de uma cirrose. O álcool, amigo de muitos escritores, cobra caro sua companhia. Alguns grandes escritores morreram decaindo. Jean-Paul Sartre primeiro perdeu a lucidez e chorava por não entender o que lia; depois defecava e urinava nas calças – a famosa incontinência pegou-o de cheio. Depois ficou senil. Em seguida morreu. Não fosse a fiel Simone segurar as pontas seria ainda pior.

Mas a maioria dos escritores gosta mesmo de morrer velhinho, dizendo quase aos noventa que ainda está lúcido. Como Jorge Luiz Borges, que não enxergava, mas andava faceiro mundo afora usufruindo a tardia e apreciada fama. Algo que José Saramago ainda faz. Mas há esta categoria trágica. A dos suicidas. Alguns foram de forma abrupta, como Ernest Hemingway – na manhã de 2 de julho de 1961 ele deu um tiro de fuzil na boca. Pegou mal, porque ele era valentão e deixou suspeitas que no fundo morria de medo de morrer. Mas ele tinha seus motivos: aos 61 anos, com hipertensão, diabetes, arteriosclerose, depressão e perda de memória, Hemingway concluiu que tinha pouca coisa boa a esperar da vida. E pumba!

Outros se suicidaram de forma quase simplória. Como é o caso de Virginia Wolf. No dia 28 de março de 1942, após colapso nervoso, vestiu casaco, encheu os bolsos de pedras e entrou no rio Ouse, afogando-se. Simples. O corpo foi encontrado dia 18 do mês seguinte. Para quem suspeitava que Virginia ficara maluca, ela deixou recado esclarecedor, ao marido Leonard: ‘Querido. Tenho certeza de estar ficando louca novamente. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar’. E antes que as vozes a chamassem de volta ela foi para o rio.

Na categoria suicídio poético nada mais tocante que o de Sierguei Iessiênin, amigo do poeta Vladimir Maiakovski e marido de Isadora Duncan. Iessiênin cortou os pulsos, pegou o sangue e escreveu o seguinte poema: ‘Até logo, até logo, companheiro. Guardo- te no meu peito e te asseguro; o nosso afastamento passageiro é sinal de um encontro no futuro. Adeus, amigo, sem mãos nem palavras. Não faça um sobrolho pensativo. Se morrer, nesta vida, não é novo, tampouco há novidade em estar vivo’. E enforcou-se. Era o ano de 1925. Local: Hotel Inglaterra em Leningrado, hoje e antes da revolução conhecida como São Petersburgo.

A União Soviética foi pródiga em suicídios de escritores. Autoridades soviéticas estimulavam este hábito. A poetisa Marina Tzvietaieva ficou chateada que as autoridades fuzilaram seu marido e mandaram a filha para um campo de concentração. E pôs fim à própria vida. Mais estranho foi o caso de Isaac Babel que se recusou a suicidar e a polícia de Stalin o suicidou. Sem contar Maiakosvski que resolveu dar um tiro em si mesmo em 1930.

No Brasil os casos notórios de escritores nesta categoria ficam por conta de Torquato Neto, Pedro Nava e Ana Cristina Cesar. Torquato se foi em 10 de novembro de 1972, um dia depois de fazer vinte e oito anos. Voltou de uma festa, trancou-se no banheiro e abriu o gás. Deixou um bilhete: ‘Pra mim chega!’. Ana foi onze anos depois, em 29 de outubro de 1983. Aos trinta e um anos, se atirou pela janela do apartamento dos pais no décimo terceiro andar de um edifício na rua Tonelero. E Nava morreu no ano seguinte, aos 80 anos, porque era chantageado por um garoto de programa.

Ninguém enfrentou a morte com euforia. A diferença com Mishima é esta. Mas o caso tem explicação. Kimitake Hiraoka usou o nome artístico de Yukio Mishima para driblar o veto paterno à carreira literária. Ele nasceu em 1925. Embora com quinze anos quando estourou a Segunda Guerra, participou do conflito na condição de mero observador. Foi recusado para o combate por motivos de saúde e físicos – era mirrado.

Este episódio explica o que ocorreu depois. Mishima viu amigos morrerem e sentiu remorso. Achava que perdeu a oportunidade de ter uma morte heróica. Passou o resto da vida procurando a morte heróica. Este sentimento pode ser encontrado no conto manifesto Patriotismo (Yukoku). A obra que entre os seus 40 livros de novelas, poemas, ensaios e peças traduz a sua relação obsessiva com a morte e o fato de vê-la como um elemento libertador e grandioso. No conto, um oficial não vai a combate com os companheiros por estar de casamento marcado. Ao saber da morte dos amigos numa batalha, depois de se casar pratica o seppuku na frente da jovem esposa, não sem antes dar uma saideira com a jovem patroa. No conto faz uma descrição fiel de um harakiri.

Quando o pai de Mishima percebeu que o filho ia ser escritor, o pai -, mais rude que beque de fazenda – ordenou que ele fosse o melhor do Japão. Some tudo e temos os elementos que moldaram os passos seguintes de Mishima. O seu livro Confissões de Uma Máscara (Kamen no Kokuhaku) foi um sucesso, quando o autor contava com apenas 24 anos. Conta a história de um jovem e talentoso homossexual que se esconde atrás de uma máscara para evitar os preconceitos sociais. O jovem em questão era Mishima.

Daí em diante Mishima começa a praticar artes marciais e se alista no Exercito de Auto-Defesa do Japão onde forma e comanda a Sociedade da Armadura (Tatenokai), que estuda artes marciais. Aos 33 anos casou-se com Yoko Suguiyama, com quem teve um filho e uma filha. Além de escritor foi ainda ator e co-dirigiu uma de suas histórias. Durante um ano Mishima preparou os detalhes de seu suicídio. Ele criou o cenário para o ritual com qual sempre sonhou.

Acompanhado de quatro membros do Tatenokai, rendeu o comandante do quartel das Forças de Auto-Defesa de Tóquio, fez um discurso patriótico para persuadir os soldados a restituírem os poderes do imperador reduzidos pelas tropas americanas de ocupação. Com a indiferença da tigrada, ele cometeu o seppuku assistido por Hiroyasu Koga, já que seu amante Masakatsu Morita falhou no momento decisivo. Quando morreu, Mishima tinha concluído sua obra mais audaciosa: O Mar da Fertilidade (Hõjõ no Umi), uma bela tetralogia.