Universal lança CD de Caetano e Jorge Mautner

As risadas e os sustos que as conversas com Mautner sempre provocam excitaram minha imaginação de modo especial nos encontros que tivemos, entre outubro e dezembro de 2001, o que me levou a desejar fazer um disco em colaboração com ele.

A amizade que mantemos desde que nos vimos pela primeira vez, em Londres, no começo da década de 1970, é e foi sempre muito importante para mim. Mas nunca tive tão clara em minha mente a pergunta sobre minha verdadeira ambição quanto durante esses papos mais recentes: certamente o que ambiciono não é a fama e menos ainda a riqueza “material”; será a poesia?, a política? ou… a profecia?

Foi essa hipótese da ambição profética que me levou a propor a Mautner o disco conjunto. Porque Jorge é uma improvável mistura de paganista com profeta de Israel. Daí é que vem o fascínio que sua curiosa personalidade paraliterária, paramusical e parapolítica (sua instigante personalidade tour court) exerce sobre mim.

Sem dúvida, é dessa combinação que vieram suas inclinações de adolescência para liderar movimentos com características quase fascistas, o que, paradoxalmente (?), o levou aos altos círculos do Partido Comunista e, sobretudo, à produção de um romance assombrosamente forte chamado Deus da Chuva e da Morte. A experiência, na extrema juventude, de debruçar a imaginação mítica sobre informações secretas da política pesada deu-lhe uma visão única (e mais contraditória na aparência do que na realidade) de como se joga com o poder no mundo. Uma visão que ele não cansa de reconstruir, me virar, atualizar.

Os terríveis acontecimentos de 11 de setembro de 2001, envolvendo Nova York, cidade amada por ele e por mim, e repercutindo na situação de Israel, país que adoramos, e no vasto Islã, que nos fascina e nos remete à pergunta pelo destino da idéia central do povo judeu, o monoteísmo, nos levaram a conversas sobre o mundo, o Brasil, a vida dos homens. Nessas conversas, às vezes eu sentia medo. Pois bem: foi para espantar o medo que decidi pedir a Jorge que deixássemos tudo desaguar em canções. Depois de vê-lo, no carnaval de 2002, em Salvador, cantar o Hino do Carnaval Brasileiro, num trio elétrico, em meio a um verão singularmente amargo para mim, entendi que o disco teria que ser feito logo que eu voltasse para o Rio.

As canções que fizemos não lembram ou ilustram essas conversas de que falei. São, em geral, canções pop-paródicas: elas exibem o distanciamento que Mautner mantém em sua permanente metamorfose apaixonada. Fazem rir e podem fazer chorar. Algumas eu fiz sozinho, mas não as teria feito se não fosse para um disco com Jorge Mautner. Tudo no disco tem a ver com o clima dele – ou com o clima a que ele me transporta.

Hipertropicalista, porque tropicalista avant la lettre, Mautner não pode conceber o que venha a ser uma necessidade de criar-se o antitropicalismo (uma necessidade genuína que muita gente mais jovem confessa sentir – o que não deve ser confundido com as, talvez, mais freqüentes manifestações de mesquinhos desejos de substituição de celebridades): ele reanima as motivações elementares daquele movimento, que são, afinal, as mesmas que movem seus principais líderes: eis porque Gil foi chamado para cantar conosco o meu Feitiço (uma resposta ao Feitiço da Vila, de Noel) e para pôr música nos versos de Coisa Assassina, de Mautner. É não apenas o Gil tropicalista que está ali: é p Gil que excursionou com Mautner nos anos 1980 com o show O Poeta e o Esfomeado.

Mas Mautner é hipertropicalista também porque ele não foi, à época do movimento, um tropicalista: esses eram bossanovistas que se subvertiam; Mautner era, tal como Raul Seixas, um amante do rock’n’roll e das baladas country norte-americanas (além dos samba-canções de Adelino Moreira) que exibia (até no texto de seus primeiros livros) desprezo pela bossa nova. De fato, ao gravar com ele Todo Errado (de onde, afinal, saiu o título do disco), pensei muito em Raul e nas coisas da letra de Rock’n’Raul. Assim, Eu Não Peço Desculpa é também uma continuação de Rock’n’Raul, essa canção que me parece tão grandiosa quão mal compreendida. Gravei Lágrimas Negras e Maracatu Atômico porque acho essa uma obra-prima obrigatória e aquela uma das mais belas canções sobre a tristeza já feitas.

E porque queria pontuar o disco com lembretes do peso da obra de Jorge. Pedi a ele que escolhesse algo meu para regravar: ele chegou ao estúdio com essa Cajuína, que ele acreditava ser puramente nordestina e se revelou tão estava em sua voz e em seu violino que, Kassin, que produziu o disco comigo (ou para mim), resolveu adicionar palmas e um fole (que às vezes toca uma terça menor em choque com a terça maior de um acorde recorrente).

Sem Kassin, aliás, esse disco não seria o que é. Kassin, que conheci através de Moreno – que, por sua vez, o conheceu por intermédio de Pedro Sá – é um talento imenso e muito peculiar. Totalmente do mundo dos novos miniestúdios como pro-tools, informadíssimo, inspiradíssimo, ele tem tão pouco medo do ridículo quanto Mautner – e a mesma capacidade de estar sempre roçando a paródia. Tem também um suingue inacreditável. Seu baixo bate no tempo de modo tão gostoso e moderno (sem fazer sotaque de baixista suingado de jazz-fusion que parece que não tem ninguém tocando, que é o próprio tempo dizendo-se, sem um ego chato para atrapalhar. Pedro Sá, Davi, Domênico, Moreno e outros músicos convidados entravam e saíam da sala minúscula do estúdio.

Nelson Jacobina estava sempre lá: o grande Nelson, o Carneirinho, principal parceiro de Jorge (não só o mais freqüente como também co-autor das obras-primas). Fabiano, pilotando, só transmitia tranqüilidade, doçura e segurança. Tarta, quase que só doçura. Havia também uma foto da Luana Piovani pregada na porta, do lado de dentro do estúdio. Dizíamos que ela era a nossa padroeira: ela foi a madrinha da bateria do nosso samba. Um dia eu a levei lá. Em carne e osso. Parecia uma visão irreal. Ela ficou até o final da sessão. Todos os rapazes ficaram extasiados. Ninguém se recuperou ainda direito. Quem canta seus males espanta. Esse disco é para a gente atravessar esses tempos de homens-bomba, especulação globalizada, dengue e insegurança. Com a ajuda da lua de Jorge – e das Luanas – chegaremos vivos a um outro ambiente.

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