Uma visão atual da medicina

"A Medicina é tão velha quanto o homem" (Paul-Eugéne Charbonneau, padre dominicano da Ordem dos Pregadores).

Se considerarmos o surgimento de alguma forma de sofrimento ocorrida com o ser humano primitivo, podemos afirmar, seguramente, que despertou espontâneo gesto de solidariedade, de apoio, de carinho, de alguém, pois a compaixão, a misericórdia, constitui sentimento inerente ao ser humano. Eis, pois, o primeiro ato médico!

É também do padre Charbonneau a significativa expressão, que conceitua as conquistas e avanços da Medicina: "Para nova época, nova Medicina; para nova Medicina, novos problemas; para novos problemas, Moral renovada".

Em dezembro de 2005, quando a turma de Medicina da UFPR, à qual pertenço, completou 45 anos da formatura e 50 anos do início do Curso de Formação, apresentei aos colegas uma Visão Retrospectiva da Ética Médica, nos seguintes termos:

De 1955, quando ingressamos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Paraná, após vencer a "batalha" do vestibular, são decorridos 50 anos.

A visão que tínhamos da ética médica,era bem diferente da que é praticada hoje. Embora os princípios sejam os mesmos, os conceitos são violados, consciente ou inconscientemente, condicionando lamentáveis descompassos, que maculam a nobre profissão médica.

A ética consiste, a meu ver, na defesa da integridade do ser humano, e é válida para todas as atividades sociais. A ética médica, com maior ênfase, porque a medicina é mais do que uma profissão, é missão, que objetiva o bem-estar do ser humano. Daí o conceito de que a medicina é a profissão da misericórdia por excelência.

Para o professor Carlos da Silva Lacaz, em seu livro Ensaios médico-sociais, editado em 1984, – "A medicina não foi criada para o interesse dos médicos e sim para o interesse dos pacientes, pois ela nasceu da angústia e do sofrimento dos necessitados".

Todo profissional médico pratica, em maior ou menor grau, as virtudes da misericórdia e da caridade. A misericórdia, termo de origem latina "misereri", que significa piedade, compaixão ante o sofrimento do semelhante; e "cor", "cordis", que é o coração. Não o coração muscular, bomba aspirante e premente, a impulsionar o sangue para irrigar todo o organismo, mas coração e sentimento.

Movido pela virtude da misericórdia, o profissional médico é inclinado à prática da maior de todas as virtudes, que é a caridade, conforme proclama o apóstolo São Paulo em sua 1.ª Carta aos Coríntios (I Cor, 13-13). Caridade também é expressão de origem latina "caritas", virtude que nos leva a desejar e a praticar o bem para com o semelhante.    

Evidentemente, a prática da caridade não é privilégio da classe médica. Qualquer pessoa que pratique algo em benefício do próximo, realiza um ato de caridade. Mas, aos profissionais da medicina, mais do que os profissionais de todas as demais atividades, a caridade é inerente ao exercício da arte de curar, ou de minorar os sofrimentos.

Quando iniciamos os estudos médicos, em 1955 e, a partir de 1960, como profissionais, a ética médica era vista com tamanho respeito, verdadeira devoção, que despertava especial atenção e até algum escrúpulo, tendo sempre presente o Juramento Hipocrático: "… Nunca me servirei da minha profissão para corromper os costumes, ou favorecer o crime…"

Também havia uma certa deturpação do conceito de Ética Médica. Era a anti-ética, para acobertar violações praticadas por colegas.

É de Aristóteles o conceito de que "A ética deve buscar o bem supremo, e que este se encontraria na ação, nas ações boas, nobres e virtuosas, que levam à felicidade."

Em síntese, é o que foi afirmado no início, de que "A ética é a defesa da integridade do ser humano, ou seja, todo o seu ser físico, mental, espiritual e, muito mais ainda, o seu relacionamento com os semelhantes e com todos os seres com os quais usufrui e compartilha as maravilhas da natureza. "

A ética médica, como a ética em geral, vem sofrendo, nos últimos anos, as conseqüências do espantoso progresso científico e tecnológico. Deveria ser o contrário: mais recursos, mais eficácia nos procedimentos médicos. Conseqüentemente, mais harmonia e felicidade recíproca no relacionamento médico/paciente. O que vemos, sentimos e sofremos, é lamentável animosidade: pacientes que fazem exigências de exames complementares, e também médicos que solicitam exames desnecessários, que não complementam coisa alguma, porque não há o que complementar. Estabeleceu-se um clima paradoxal: muitos meios eficientes, mas nem sempre adequadamente utilizados, gerando insatisfação e desperdício. Profissionais existem com tendência a superestimar o emprego de meios requintados, ao mesmo tempo que não aproveitam os meios propedêuticos e até o próprio paciente, em sua integridade. E a "guerra" de supostos erros médicos com finalidades extorsivas? Sem comentário.

Eis, em síntese, alguns aspectos das múltiplas transformações ocorridas neste meio século em que nós vivenciamos ou contemplamos, no campo da ética médica.

Ary de Christan – Membro f undador da Academia Paranaense de Medicina.

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