Uma aproximação (literária) entre São Paulo & Vieira

Saulo, que depois se chamou Paulo de Tarso, o grande convertido da estrada de Damasco, que ficaria conhecido pelo título de Apóstolo das Gentes, grande santo e ideólogo maior do Cristianismo, foi também um prosador respeitável. Isso se dermos crédito, como devemos dar, às duas clássicas traduções portuguesas da Bíblia.

Quais são essas traduções? A do padre João Ferreira de Almeida (Lisboa, 1719), e a do padre Antônio Pereira de Figueiredo (Lisboa, 1791). Essas duas traduções são até hoje as mais lidas em Portugal e no Brasil. Aliás, a tradução admirável de Figueiredo é justamente considerada um monumento estilístico da nossa língua, por autoridades filológicas da importância dos lusos Cândido de Figueiredo e Luís Felipe Lindley Cintra, e dos nossos (conspícuos) Antenor Nascentes e Antônio Houaiss. Essa tradução possui a mesma dignidade e a mesma dimensão estética da tradução alemã, de Lutero, e da inglesa, elaborada por uma comissão de 47 tradutores nomeados pelo rei Jaime I, por isso mesmo conhecida como “the translation of King James I”.

De passagem, é bom lembrar que muitos escritores brasileiros se confessam tributários da tradução figueiredina. Entre eles, destaco apenas três: Joaquim Nabuco, Machado de Assis e Dalton Trevisan.

A excelência da prosa paulina se revela, evidentemente, nas quatorze epístolas que integram o Novo Testamento bíblico, traduzidas por Figueiredo. E eu não posso admitir que uma tradução, por melhor que seja, possa melhorar a qualidade do texto original.

No seu conjunto orgânico, as epístolas paulinas representam e consubstanciam uma espécie de suma teológica, ou melhor, cristológica. Na sua textualidade se manifestam ainda nítidas inflexões filosóficas – ou filosofantes. Constituindo, pois, um verdadeiro tratado de teologia, até mesmo de cristologia, as cartas de São Paulo são também uma gramática da fé cristã, com sua morfologia e sintaxe bem definidas.

Mas é a faceta literária, ou estilística, que pretendo abordar com mais rigor. Poderia arrolar aqui dezenas de fragmentos das páginas do nativo de Tarso, para demonstrar a clara “literariedade” (do russo “liberaturnost”) que nele se evidencia, do modo transparente.

Contudo, eu me fixarei apenas, a título de exemplificação, na primeira epístola aos Coríntios, capítulo 13, versículos 1 a 13. “Ipsis litteris”: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se eu não tiver caridade sou como o bronze que ressoa, ou como o címbalo que retine. Mesmo que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, mesmo que eu tivesse toda a fé, a ponto de mover montanhas, se não tiver caridade não sou nada. (…) A caridade é paciente, é bondosa. Não tem inveja. A caridade não é orgulhosa. Não é arrogante. Nem escandalosa. Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais acabará. As profecias desaparecerão, o dom das línguas cessará, o dom da ciência findará. A nossa ciência é parcial, a nossa profecia imperfeita. Quando chegar o que é perfeito, o imperfeito desaparecerá. Quando eu era criança, falava como criança, agia como criança. Desde que me tornei homen, eliminei as coisas de criança. Hoje vemos como que por um espelho, confusamente. Mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte. Amanhã, conhecerei totalmente como eu sou conhecido. Por ora subsistem a fé, a esperança e a caridade – as três. Porém, a maior delas é a caridade – o amor”.

Temos aí um prosador de alto coturno, discorrendo com propriedade e beleza sobre um tema cristão por excelência – a caridade, sinônimo de amor. E, fenômeno estranho, lendo esse texto (e também outros, muitos) nós temos a impressão de estar lendo um trecho de um sermão do padre Antônio Vieira (que Fernando Pessoa, num poema da “Mensagem” chegou a considerar o “imperador da língua Portuguesa”).

Na verdade, confrontando fragmentos das cartas de São Paulo e dos sermões de Vieira, somos obrigados a concluir que, provavelmente, o mestre luso-brasileiro (ou lisboeta-baiano) da parenética (ou sermonística) se inspirou ou bebeu na fonte paulina, através da Vulgata Latina, de autoria de São Jerônimo, outro tradutor magistral.

A arquitetura prosódica e retórica, tanto no santo como no eclesiástico, possui uma indiscutível similitude. Há nos textos de ambos, simetrias, coincidências, sincronias. Vou mais longe: o estilo vieirense parece paulino. O de São Paulo, vieirense. Não há dúvida, porém, de que a primeira hipótese deve ser a mais provável, a mais aceitável e a mais lógica.

Pela minha ótica, talvez precária, o grande pregador luso-brasileiro deve algo ao Apóstolo das Gentes, em termos estilísticos. Esse fato me parece simplesmente inquestionável.

Confesso que nunca li, em lugar e momento algum, qualquer menção a uma possível aproximação entre São Paulo e Vieira, em termos literários. Imagino que seja uma aproximação inédita, a minha. Se for, imagino que ela exija um aprofundamento maior. Quem se habilita a fazê-lo?

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