Um olho no pára-brisa, outro no retrovisor

No primeiro contato com Cosmotron (Sony Music), sétimo disco de estúdio do Skank, fica evidente o mergulho no legado de outro quarteto, o de Liverpool. Das fotos do encarte à sonoridade de diversas faixas – como Dois Rios, a “de trabalho” – o disco exala Beatles por todos os poros. Nos mellotrons, nas harmonias de voz, nas guitarras, na bateria reta, nas melodias dos refrões, nos climas.

Supernova, a primeira, com letra de Fausto Fawcett, de cara nos transporta à fase lisérgica dos fab four – densas camadas de guitarras e teclados, melodia mourisca, cítaras… e Samuel Rosa cantando com efeitos anasalados, como um autêntico Sgt. Pepper. Os Beatles do início da carreira aparecem na oitava faixa, Vou Deixar. Dá até para ver os mineiros pulando e tocando de “terninho”.

A herança transparece em outras músicas, como no refrão da pungente As Noites, nos vocais de Amores Imperfeitos e Um Segundo. Mas nenhuma vai soar tão familiar aos beatlemaníacos como Dois Rios: do piano à melodia, da voz aos gemidos de guitarra com slide, parece que descobriram uma gravação perdida de Lennon e McCartney… e em português! “O Samuel tem ouvido muito os discos solo do John Lennon nos últimos dois anos”, ajuda a explicar o baterista Haroldo Ferretti.

Mas nem só do quarteto fantástico vive Cosmotron: Pegadas na Lua, parceria de Samuel com Humberto Effe (ex-Picassos Falsos), é uma levadona ao violão, com vocais lembrando o Red Hot Chili Peppers de By the Way. Por um Triz conduz à Inglaterra de hoje, graças à guitarreira britpop, o talkbox, os teclados. O refrão é maravilhoso, e o final lembra Champagne Supernova, do Oasis, com vocalizes em falsete soterrados pelo peso das guitarras.

O Skank antigo, dos tempos do Calango, aparece ligeiramente no reggae eletrônico Nômade, com um andamento lento e cadenciado, como o andar de um camelo. Destaque para a participação de Paco Pigalle e o final jazzy, com Haroldo e Lelo Zaneti “esmerilhando” na cozinha, enquanto Henrique Portugal passeia ao piano.

Em Formato Mínimo, a banda presta uma homenagem a Chico Buarque e as proparoxítonas de Construção. Só escorrega no português no último verso, ao dizer “Da solidão a rúbrica”. Rubrica na verdade é paroxítona… preciosismos ortográficos à parte, a música é deslumbrante, com um refrão sem letra perfeito.

A comoção prossegue na faixa seguinte, Resta um Pouco Mais, a única que não leva a assinatura de Samuel Rosa (os créditos são do baixista Lelo Zaneti e de Chico Amaral, parceiro habitual do vocalista). Trata-se de uma baladona ao violão, com letra triste e melodia lancinante. De cortar os pulsos.

O astral volta a subir na incendiária Os Ofendidos, um rockão meio glam de letra forte e refrão poderoso, baixo tonitruante e Samuel detonando na voz. Refeito da melancolia, o ouvinte pode saborear É Tarde, ensolarada bossa-nova tecnológica, na linha de Balada do Amor Inabalável, sucesso do disco anterior. Fecha o CD Sambatron, uma música meio “desplugada” das outras 13. O início lembra o Skank antigo, mas logo a banda emenda um drum?n?bass, com a melodia serpenteando por cima, para no final cair em espasmos rock. Ou seja: indefinível, ainda que boa.

Como evoluir olhando para trás

Os jornalistas que escrevem sobre música tendem a ter uma postura “professoral” quando nos chega às mãos um disco novo. Mais ainda se for de uma superbanda como o Skank, a bordo de uma gigante como a Sony: sentamos confortavelmente, colocamos o CD para tocar e passamos a “analisar” as músicas. “Ah, esse solo eles chuparam da banda X, a linha de baixo remete ao eletro-punk-glitter feito no País de Gales nos anos 80, a voz parece o que o cantor Y fez trinta anos atrás, a bateria tenta fundir os ritmos K e Z”.

Tudo o que você leu na matéria são impressões dessa audição “analítica”. Ao ouvir o disco outras vezes depois, sem a obrigação de traduzi-lo, Cosmotron surge como é na essência: um excelente registro pop, com canções e letras inspiradas, feitas sob medida para servir de trilha sonora nas aventuras de gente comum. Flagrei-me contemplativo, pensando nas agruras da vida, ao som de Resta um Pouco Mais, por exemplo. Ou cantarolando o magnífico refrão iletrado de Formato Mínimo. Parece Beatles? Em vários momentos sim, e muito. Mas também lembra Beach Boys, The Hollies, The Kinks, Oasis, Radiohead, Casa das Máquinas, Clube da Esquina… convenhamos que são belas fontes de onde beber. Soa datado? Absolutamente não. O Skank está em sintonia com as grandes bandas da atualidade – Strokes, White Stripes, The Hives – ao aliar o clima retrô à sonoridade contemporânea. Terninhos sem cheiro de naftalina.

Mas qual é mais Skank: o de Garota Nacional ou o de agora? Com a palavra, o baterista Haroldo Ferretti: “Estamos pavimentando a estrada aberta por Maquinarama [o elogiado álbum anterior]. Os Beatles e tudo que foi feito no final dos anos 60 e 70 e até o progressivo, no Brasil e no mundo, fazem parte do nosso DNA musical. Talvez isso não tenha ficado muito explícito no início da carreira, quando estávamos muito ligados à música pop jamaicana. Mas as nossas ambições pessoais e musicais vão mudando. Não somos mais os mesmos de 10 anos atrás. Cosmotron é absolutamente fiel ao que a banda pensa e é hoje”. Falou e disse.

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