Tradição e herança caiçara no Paraná

Se antigamente a palavra de origem indígena caiçara (kai?sara) identificava uma cerca de proteção em torno da aldeia e, mais tarde, descrevia uma palhoça na praia, atualmente designa o pescador e os moradores do litoral do Paraná. ?Os moradores da Ilha das Peças (ou peçanos) atuais, modificados pelo que foi assimilado do parnanguara, do curitibano e do paulista ao longo de trezentos anos, mostram-se felizes em ser ao mesmo tempo arcaicos e modernos?, destaca Eliana Rocha em sua pesquisa de mestrado, que contou com a orientação do professor Ricardo Cid Fernandes do PPGAS-Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFPR-Universidade Federal do Paraná.

Eles moram próximo de grandes centros que dispõem de bens de consumo e serviços de relativa qualidade, como os de saúde e educação; dominam e usufruem de uma região de grande beleza e preservação natural, ou seja, adotam as vantagens do progresso conservando sua personalidade regional. ?A imagem exata da gente da ilha, facilmente identificada em relação aos moradores que vêm de fora e dos turistas, é de beleza e robustez. Homens, mulheres e crianças se mostram orgulhosos de suas águas (dos rios que cortam a ilha) e de seus mares?, explica Rocha.

O trabalho de pesca artesanal.  Foto: Eliana Rocha

Para a pesquisadora e geógrafa, também professora de Antropologia Cultural na Facimod-Faculdade Modelo do Paraná, a especificidade do morador da Vila das Peças está em vários aspectos, se consideradas as demais vilas da ilha (Guapicu, Tibicanga, Bertioga e Laranjeiras), ou seja: a pesca se dá nos moldes da produção mercantil ampliada na vila; é a principal fonte de bens destinados à venda pela qual o pescador estabelece contato direto com o mercado através do intermediário.

Na Vila das Peças pratica-se a pesca de arrasto a motor, tanto dentro da Baía de Paranaguá quanto na plataforma costeira, além da pesca artesanal quando em terra. O trabalho é assalariado, diferentemente dos pescadores das demais vilas da ilha, que pescam em família e o valor da venda do produto fica com o chefe da família, pai ou irmão mais velho e não se negocia o preço.

Na praia os pescadores realizam o trabalho de terra: a confecção e o preparo do material de pesca. Foto: Eliana Rocha

Vende-se a pequena pesca artesanal pelo preço que o atravessador paga (quando vai buscar) ou é utilizada para o próprio consumo. A pesca de camarão, tanto artesanal quanto a motor, é praticada exclusivamente para venda. Aí ocorre o período de maior contato entre os pescadores artesanais das demais vilas da ilha com os pescadores de mar de fora, pois todos vendem o produto na vila, para pousadas ou atravessadores.

Outro aspecto bastante relevante ao se considerarem as diferenças está na quantidade de turistas que a vila recebe, brasileiros e estrangeiros, o que contribui grandemente para a troca de informações políticas, econômicas e tecnológicas (equipamentos de pesca). A quantidade de pesquisadores ligados aos temas ambientais que visitam a vila é enorme, além dos religiosos.

Mas não é só de anzóis e motores que vivem os peçanos. Dentre a diversidade de orações e crenças, a pesquisadora destaca a reza do terço contra o ?mau olhado?. Mau olhado é uma olhadinha meio ciumenta, sem intenção de prejudicar. Diferente do mau olhado é o ?olho gordo?, que é o elogio demasiado. É quando a mãe ou a sogra do pescador elogia demais a pesca dele ou fala demais da beleza ou inteligência dos netos, ou dos predicados domésticos da filha ou nora. Acaba, com isso, a própria pessoa ?botando olho gordo e faz as outras pessoas continuarem bem, mas ficarem sem sossego?, relata a professora.

Reza-se o terço também contra o ?quebrante? pois às vezes acha-se a criança bonita demais e, ?sem querer? coloca ?quebrante? nela, que adoece repentinamente e repetidamente, de tosse comprida, de resfriado ou lombriga. Sua devoção a São Sebastião busca proteção contra as doenças e os desentendimentos. No caso do tempo não estar muito firme, os pescadores clamam por Santa Rosa de Lima, que protege das tempestades e tormentas, ou por Santa Bárbara, que os defende das trovoadas e dos raios na beira da praia. As mulheres são devotas de Santo Antônio, que favorece os casamentos, de Santa Luiza, que livra da cegueira e dos males da visão e, em favorecimento dos maridos e dos filhos, estendem sua devoção a Santo Onofre, que devolve objetos perdidos ou roubados.

Diversos outros aspectos são destacados por Rocha, para quem a antropologia ?é a ciência que busca a interpretação do discurso no plano do próprio sujeito do discurso. Contando com um olhar já sensibilizado pela teoria, o antropólogo, ao chegar no campo, procura juntar a observação direta com as histórias, crenças e memórias do nativo, e a interpretá-las sob o ponto de vista que não é dominado pela experiência do pesquisador, ou seja, busca pensar o arranjo social que encontra sem se apoiar em sua própria herança cultural?.

Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestranda em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná

zeliabonamigo@uol.com.br

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