Literatura

Texto inédito do novo livro de Dalton Trevisan

O escritor curitibano Dalton Trevisan está com livro novo na praça. Desgracida. Livro que contém duas partes simétricas – a maior, Ministórias, cheia de contos curtos. A menor – Mal Traçadas Linhas, com algumas deliciosas epístolas endereçadas a amigos e outros. Se pela primeira vale a pena, pela segunda, nem se fale. Confira esta endereçada ao amigo Otto Lara Resende, publicada com autorização do escritor. E tire suas conclusões.

2 de maio 88

Otto, Acabei de ler o Journal Littéraire do grande Léautaud (os anteriores 19 volumes agora em três, completos, edição Mercure) – hoje sou doutor em velhinho sujo. Tão bom quanto o Rousseau? E mais engraçado. Como julgar um texto? Si je n’ennuie pas tout est parfait. O seu fabuloso diário, que grande, que único romance.

Registrou, dia a dia, quase 70 anos da vida literária francesa. Secretário perpétuo da revista Mercure de France, conviveu com os grandes da época: Gide, Valéry, Apollinaire, o jovem Malraux, quantos mais.

Olhinho vivo, orelha espertaf. Desabusado, irreverente, contestador. Cronista e crítico imparcial das grandezas e misérias do seu tempo.

Decerto um original. O espírito gaulês em carne e osso (mais osso que carne). Na reunião da Sociedade Protetora dos Animais, o champanha é servido por Mme. Cayssac que ao vê-lo, antes do brinde, prestes a beber: Trinquez au moins à La santé des bêtes! E o nosso herói, chegando na dela a sua taça, com o sorriso mais gracioso: À votre santé,Madame.

Tanto bastou para conquistá-la. Você e eu achamos que nem tudo se deve contar. Mas não ele. Duro consigo. Cru com os outros. Aqui, pardal. Serin, va.

Aos 70 anos, confessa três vícios – cigarro, café, minete. Só não traçou a mãezinha (abandonado aos quatro anos foi revê-la 20 anos depois!) pois na hora decisiva a ingrata arrepiou. Com ela teve os melhores sonhos eróticos até os últimos dias.

Lúcido no olho do furacão de ódios e paixões de duas Grandes Guerras. La Marseillaise… comme chant national un chant de massacre. Sobranceiro aos hinos de massacre, dizia e escrevia – la patrie, c’est la langue.

(Epa! Já identificou o eco português?)

Sobreviveu com um bocado de pão, uma fatia de queijo, um gole de café. Ou três batatas cozidas, quem sabe.

Almoço de dez minutos e, segundo ele, prazeres de cinco (uai! ejaculador precoce?).

Escrevia ao suave arranhar da pena de ganso à luz de duas velas. Si bref qu’on soit, on est encore long. Na festiva companhia de 40 gatos e 20 cachorros (por eles tão grande bem-querer que nega a hidrofobia e acusa Pasteur de charlatão).

Mais a adorada macaquinha, a filha que não teve. Antes de morrer e, para poupá-la (velha e doente) da impiedade alheia, ele mesmo a afogou no tanque – com que dor o olhava através da água, com que amor.

Dele o Valéry – um passional na discussão – se protege, tudo o que você diz (Qu’on le fusille,Dreyfus, et qu’on n’en parle plus), o velhinho anota na sua fúria de escrever. Assim que adoecem, os amigos lhe fecham a porta. Debruçado no leito de dores e gritos, não poupa a descrição de careta, espirro, sororoca. (Já no In Memoriam o relatório implacável da agonia desse pai dos pais).

Vale a pena cotejar a sua narrativa da morte, velório e enterro de Charles- Louis Philippe (o defunto… c’est tout à fait une marionnette de jeu de massacre) com a versão do Gide no dele não menos fabuloso journal.

Interessado nos autores e pouco nas obras. Em sua coluna de crítica teatral, se o espetáculo lhe desagrada… por que não contar episódio divertido sobre um dos gatos?

Também se permite indiscrições um tantinho perversas. Do colega íntimo, no panegírico, lembra gentilmente o oloroso pé – e não entende por que a viúva lhe nega o cumprimento. Do patrão e editor, tão elegante, por que o eterno lenço sujo? De outro, grande poeta, o dedo no nariz. Do nosso André Gide as unhas de luto.

E das amantes, Otto, você não me deixa mentir. Da mais dileta insiste na pose em que, perna aberta, mija de pé. Essa mesma (À votre santé,Madame!) que de início era – ma chère Amie. Em seguida – la Panthère. E afinal – le Fléau!

Se confessando (o coração nu) – quelque peu xénophobe… anti-sémite (littérairement)… antidémocrate… anti-social et anti-patriote… E sabia do que falava: Il faut avoir des parti-pris, c’est une force.

Por favor Otto, não o julge mal. Je ne suis décidément pas un monstre.

E não era mesmo. Assim dividia o ínfimo salário: para ele nadinha, para a sua bicharada tudo. Carne moída de primeira aos cães prediletos. E peixe – do qual se absteve sempre! – aos gatos enfermos.

Alimentava diariamente os gatões selvagens do Jardim de Luxemburgo. Eis que, com a guerra, foram aos poucos sumindo, ai!, todos caçados e comidos pela gente esfomeada.

Em favor deles se resignou a uma vidinha de sacrifício e privação. Nada de sopa quente nem copo de vinho barato. E, mais que tudo, falto do carinho de uma mulher.

E como podia? Usando a roupa de segunda mão doada pelo amigo. Curvado ao bruto saco de mantimentos para os seus preciosos bichos. Todos recolhidos nas ruas, famintos, imundos, doentes.

Esses enjeitados – como ele! Esses mal-amados – como ele!

Aos homens preferiu, sim, o pobre cão e o pobre gato. E por sua heróica vida franciscana, segundo o abade Mugnier, mereceu (apesar das muitas fraquezas e pequenas maldades) decerto a salvação – tantos cães e gatos falarão tanto por ele no Juízo Final.

Quem dera tê-lo visitado lá nos idos de 50. Mas não. Na descoberta de Paris, ai de mim, só tinha olhos para o desfile sob as ordens dos flics – circulez vite! circulez! – das troteadoras mais aliciantes do mundo.

Paris não seria uma festa sem as tuas lindas mocinhas venais da rue Caumartin.