Spielberg faz crítica da razão em Munique

D81.jpgNo desfecho de Guerra dos mundos, depois de enfrentar (e superar) todo perigo, Tom Cruise deposita a filha em frente da casa dos avós, onde a espera a mãe, mas não entra. Fica lá fora, um outsider, solitário como o majestoso Ethan Edwards interpretado por John Wayne na obra-prima Rastros de ódio, de John Ford. Pouco antes do desfecho de Munique, Avner, o agente israelense criado por Eric Bana, também volta para casa, um lar provisório, no qual se encontram a mulher e a filha, em Nova York. Ele entra, mas não encontra a tranqüilidade do lar, tão cara não apenas aos personagens de Steven Spielberg – ET olha para o céu, aponta o dedo e diz a palavra mágica, home -, mas aos heróis americanos em geral, já que o tema da volta para casa, como o da segunda chance, permeia todo o cinema de Hollywood.

São Paulo (AE) – Spielberg gosta de dizer que ama os EUA, e, como bom judeu, estaria disposto a morrer por Israel, mas ele está agora menos ufanista, mais amargo. Os EUA de George W. Bush não são mais a terra prometida do sonho. A América virou um pesadelo. Essa consciência extrema faz a grandeza de Munique, que estreou nesta sexta-feira (27) nos cinemas brasileiros. É um belo filme, e triste. Começa pelo que o espectador imagina que seja o fim. É um pouco cínico, mas ao entrar no cinema você pode até pensar que já conhece o fim. O massacre de atletas judeus nas Olimpíada de Munique, em 1972, iniciou uma nova fase na história do homem. Sempre houve terrorismo com fins políticos. Gillo Pontecorvo fez nos anos 1960s, A Batalha de Argel, para discutir o assunto, tomando como referência a luta contra o colonialismo francês na Argélia. Mas, em Munique, começou uma nova era do terror, mais assustadora e violenta porque passou a ser midiatizada. A TV universalizou a experiência do terror e, ao mesmo tempo, alvos civis equipararam-se a militares para aumentar a potência do impacto

Nos 10 ou 15 minutos iniciais de Munique, os reféns israelenses são mortos na Alemanha, um tanto pela ação dos terroristas palestinos, mas também pela inoperância das forças alemãs de segurança. Munique, o filme, tem 264 minutos. Desconte 15, ou 20. Sobram 240, duas horas inteiras que compõem o day after daquela tragédia. Acompanhamos uma reunião do gabinete da primeira-ministra Golda Meir. Ela fala em razões de ordem moral, mas ordena a retaliação, sob pena de o Estado de Israel parecer fraco. Avner é chamado a formar um grupo.

Foi segurança de Golda, que conhece seu pai, sua mãe. Após a estupidez das mortes na Alemanha, Munique decola assim. Uma conversa de gabinete, as dúvidas de um homem chamado a executar uma missão e uma idéia que você não encontra no cinema de ação hollywoodiano. Montar uma operação de retaliação custa caro. O tesoureiro do Mossad pede a Avner que traga notas de todas as despesas. Mas há um preço muito mais caro que também será pago e esse outro preço é o verdadeiro tema de Spielberg.

Em filmes como A lista de Schindler e O resgate do soldado Ryan, principalmente no primeiro, quando tratou pela primeira vez da questão judaica em seu cinema, por meio do Holocausto, Spielberg com freqüência se reportou ao Talmude, que diz que uma vida humana não tem preço. A vida de Ryan vai valer as vidas de praticamente todos os integrantes do pelotão de Tom Hanks no segundo. Agora, Spielberg vai mostrar uma coisa muito mais terrível – no processo da sua luta contra o terror, Avner vai perder a alma e isso não tem preço.

Força do olhar

 Ang Lee escolheu Eric Bana pelos olhos, quando fez dele o seu Hulk. Spielberg também escolheu Bana pelos olhos. Nenhum outro ator consegue expressar tanta angústia, tanto horror, só com a força do olhar. Bana não precisa nem falar. Passa essa dimensão do homem atormentado só com os olhos. É bom voltar a Guerra dos mundos. Spielberg adaptou o livro famoso de H.G. Wells para discutir o militarismo como arma americana contra a agressão externa, como faz o presidente Bush, depois do 11 de setembro. Em Munique, trabalhando sobre um roteiro co-escrito por Tony Kushner, o autor de Angels in America, ele aprofunda a crítica do filme anterior.

A paranóia enlouquecia Tim Robbins. A caçada aos terroristas leva a uma progressiva desintegração (moral e psicológica) de Avner e ele também fica paranóico. Munique é um filme espetacularmente dirigido e o espetacular aqui não se refere tanto à voltagem de movimento e envolvimento do relato, mas à precisão do diretor e ao seu domínio sobre a linguagem. O filme parece menos elaborado visualmente do que outros do diretor, mas só parece. Essa aparente falta de elaboração realça a urgência desse relato e também o diálogo do cinema com outras mídias, como a TV, porque o que se discute, o tempo todo, é o terror na mídia e as suas conseqüências

Munique também parece, ou pelo menos alguns assim o consideram, sem centro. Spielberg não quer ficar mal com ninguém. Dá voz e razão a todo mundo. É o que faz com que seu filme provoque tanta polêmica. Os israelenses – os judeus, de maneira geral – estão detestando Munique. Natural – o filme não faz o jogo do maniqueísmo. Spielberg sabe que a realidade é muito mais complexa.

Os palestinos têm suas razões, os franceses que cobram para fornecer nomes a Avner, os americanos (da CIA) que apóiam os terroristas (como apoiaram Osama bin Laden, que é cria deles, um fato historicamente comprovado), todos têm suas motivações, que podem ser éticas, políticas e até simplesmente econômicas. Mas o filme, dando voz a todos, tem um eixo dramático. É a perda da alma de Avner. Tudo o que o diretor quer dizer sobre o combate ao terror passa por aí. Até onde um homem, um país podem ir em nome da segurança?

Munique é o filme mais forte e radical feito sobre a América de Bush filho. E é emocionante e doloroso. A ação, segundo Spielberg, vira reflexão pura. Uma crítica da razão. Não é sempre que o cinema nos propõe uma obra dessa complexidade, venha de Hollywood ou de onde vier

Serviço: Munique (Munich, EUA/2005, 163 min.). Thriller dramático. Diretor: Steven Spielberg. 18 anos. Em grande circuito. Cotação: Ótimo.

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