Sim, nós temos José Francisco Borges

O pernambucano J. Borges começou como poeta popular em 1964 escrevendo o cordel O Encontro de Dois Vaqueiros no Sertão de Petrolina, ilustrado por Dila, renomado xilogravurista da feira de Caruaru.

Borges estava com vinte e nove anos e tinha sido marceneiro, mascate, pintor de parede e oleiro.

A edição de seu primeiro cordel provocou certo deslumbramento no poeta popular, que tinha experiência de vender folhetos nas feiras do agreste pernambucano.

Em apenas dois meses a primeira obra vendeu cinco milheiros ‘de muita sorte’. O primeiro êxito estimulou o autor a escrever o segundo cordel cujo título foi O Verdadeiro Aviso de Frei Damião Sobre os Castigos que Vêm.

Com dificuldades para conseguir um clichê para ilustrar o segundo folheto e também para economizar, Borges usou uma colher de jenipapo de madeira em que talhou a fachada de uma igreja de Bezerros, cidade em que nasceu e onde mora até hoje. Foi assim que começou a fazer xilogravuras. Em pouco tempo o trabalho de folheteiro de Borges evoluiu e ele dispunha de máquinas tipográficas, passando a ser editor de folhetos.

Em 1970, por encomenda de um professor universitário de Recife, Borges elaborou duas pranchas maiores que as usadas para as capas dos folhetos. A coisa rendeu.

Dois anos mais tarde, o editor Olegário Fernandes, com banca fixa na feira de Caruaru, anunciou a Borges que o artista plástico Ivan Marqueti, do Rio de Janeiro, encomendou outras duas gravuras com os temas do Bumba-Meu-Boi e do Cavalo Marinho.

Encomendas como estas criaram uma onda -artistas plásticos, intelectuais, colecionadores e marchands do Sul passaram a comprar xilogravuras, hábito que estimulou a atividade e contribuiu para autonomia da gravura popular em relação ao cordel tradicional. A partir daí, Borges, sem deixar o cordel, passou a ser conhecido como notável artista popular na produção de gravuras e de cordel.

O trabalho de gravador seguia duas vertentes. A primeira sob encomenda para capas de livros, discos, impressos para tecidos, rótulos, cartazes e o que aparecia. Borges também não descuidava do mercado de arte.

Neste caso, ampliou o imaginário regional alimentado por uma tradição ibérica de origem medieval, recorrendo a personagens fantásticos, familiares das histórias dos cordéis, como dragões, mulheres-cobra, monstros do sertão, pavões misteriosos e outros.

As narrativas do cordel seguiam a mesma linha como no caso de O Pavão Misterioso e A Chegada da Prostituta no Céu. No entanto, ainda havia espaço nas gravuras para representar a realidade do sertão nordestino, com seus retirantes, secas, brigas de galo, vinganças, amores impossíveis e cenas do cotidiano.

E assim Borges conseguiu a proeza de ser artista popular, permanecer em Bezerros ao mesmo tempo em que dava voltas ao mundo. Produzia cordéis e gravuras e era presença habitual em exposições e galerias do sul.

Suas ilustrações foram usadas na abertura da novela Roque Santeiro em 1985. O seu prestígio cruzou fronteiras. Em 2002 foi um dos artistas escolhidos para ilustrar o calendário anual da ONU.

Em 2005 expôs em Marselha, na França, mais de 250 folhetos de cordel. Um conjunto de 30 gravuras suas foi arrematado por mais de US$ 30 mil nos Estados Unidos. O caso de Borges é um dos notáveis exemplos da sobrevivência da xilogravura, da inventividade e da força da arte popular.

O que não deixa de ser um assombro para uma atividade que chegou ao Brasil por volta de 1808 e na segunda metade do século 19 era praticada por poetas populares do Nordeste, para ilustrar suas histórias.

Acostumados a ouvir e ver pelejas de menestréis cantadores, estes artistas passaram a produzir em versos uma literatura vendida em feiras e mercados. Nascia assim a literatura de cordel, que estimulou a produção da xilogravura nos lugares em que os clichês tinham preços impraticáveis para a impressão das obras.

Até então, desde os primórdios em sua origem portuguesa, a xilogravura acompanhou o cordel e em breve sem renunciar à parceria com os folhetos, passaria a fazer uma bem sucedida carreira solo.

Era o desfecho inesperado para a produção popular de gravuras a partir da madeira iniciada em 1899 no Nordeste, quando o poeta e editor paraibano Leandro Gomes de Barros passo,u a imprimir em Pernambuco folhetos de sua autoria.

A partir daí a xilografia se desenvolveu com outros processos como os clichês de metal. As ilustrações em xilogravuras no cordel tornaram populares nos anos 30 do século passado.

É quando surge Inocêncio da Costa Nick, o Mestre Noza, pernambucano nascido em Taquaritinga e radicado em Juazeiro do Norte, no Ceará. A fase áurea da xilogravura e da literatura de cordel ocorre por volta dos anos 40, com a aparição de Dila (José Soares da Silva), que mais tarde introduziu o uso das lâminas de borracha no lugar das de madeira. É também o período de Damásio Paulo de Silva, que ilustrou o famoso romance do Pavão Misterioso, entre outros.

Os processos fotomecânicos e a fotografia provocaram, mais pela novidade, relativo abandono da xilogravura nas capas dos folhetos. No entanto, a retomada era questão de tempo: o custo do clichê de uma capa correspondia ao preço de todo o resto do folheto.

Não compensava e não restou alternativa que voltar à velha madeira, umburana, de preferência. Este retorno contribuiu para o surgimento nos anos 60, de grandes poetas xilógrafos como J. Borges, Expedito da Silva, Manoel Caboclo, Costa Leite, Minelvino da Silva, Dila e outros.

Apesar de sua relativamente intensa atividade, a xilogravura capista só veio a ser considerada arte popular independente por volta de 1953, quando o Departamento de Cultura de Recife publicou álbum e um colecionador pernambucano organizou mostra, em 1955, no Museu de Etnografia de Neuchâtel, na Suíça, influenciando artistas eruditos, como Gilvan Samico.

Outro evento contribuiu para dissociar ainda mais a xilogravura do cordel. Em 1962, Sérvulo Esmeraldo, a serviço do Museu de Arte da Universidade do Ceará, encomenda a Mestre Noza a criação de uma Via Sacra, no mesmo formato e estilo feito para ilustrar as capas de cordel.

A encomenda foi publicada em Paris por Robert Morel, editor francês. E consolidou um caminho para artistas cearenses como Walderêdo Gonçalvez, José Caboclo, Abrão Batista e Stênio Diniz, entre outros também radicados em Juazeiro do Norte.

E neste universo de artistas popular que cintila a estrela de Borges. Se a Argentina tem motivos para se orgulhar de Jorge Francisco Luis Borges, não podemos nos queixar: temos a arte de José Francisco Borges.

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