Richard Flanagan apresenta, em Paraty, seu livro vencedor do Booker Prize

O Caminho Estreito Para os Confins do Norte não era um livro que o tasmaniano Richard Flanagan queria ter escrito. “Definitivamente, não. Mas sentia que, se não escrevesse essa história, eu não poderia escrever nenhuma outra”, diz o autor ao jornal O Estado de S.Paulo, em entrevista por telefone. Isso porque esse livro, mais recente vencedor do prestigioso Booker Prize e que ele lança na Flip, é intimamente ligado ao passado de seu pai, professor primário e prisioneiro do Japão na Segunda Guerra Mundial.

O romance é centrado na figura de Dorrigo Evans, médico que sobreviveu a três anos e meio de horror ao lado de outros milhares de australianos e soldados de outras nacionalidades que receberam a tarefa sobre-humana de construir, sem equipamentos, uma ferrovia de 415 quilômetros que ligaria Birmânia e Tailândia e que ampliaria os domínios japoneses. Não se sabe ao certo quantos morreram nesta passagem pouco conhecida – até para eles – da história. Alguns falam em 100 mil. Outros, em 200 mil.

Foram 12 anos de escrita e de rascunhos queimados na churrasqueira. Nesse processo, publicou outras obras – e se forçou para concluí-lo porque seu pai estava ficando muito velho. “E eu sabia que, se não terminasse até sua morte, eu nunca mais o terminaria”, diz. E aqui a história fica mais interessante. Durante a escrita da obra, Flanagan foi ao Japão para conversar com sobreviventes do outro lado. Identificou um deles como um dos carrascos do campo de seu pai, e ele não tinha nenhum registro da violência que cometera. Depois de ouvir o escritor, pediu que ele levasse seu pedido de desculpas. Na volta, recebeu a ligação do pai. Ao ouvir sobre o pedido, ficou quieto e disse que tinha que desligar. Depois, uma de suas irmãs disse que ele começou a ratear e apagou completamente o período da guerra da memória. Tudo o que ocorreu antes e depois continuava intacto, e olha que ele já estava com 98 anos.

Esse encontro o ajudou a dar forma ao livro. “Eu não queria que ele fosse sobre a falácia da vitimização, mas sobre o que fazemos uns aos outros enquanto seres humanos e sobre como se pode fazer coisas perversas sendo o carcereiro ou o prisioneiro”, diz. Ele então conseguiu terminar a história, mas seu pai não teve a chance de lê-la. No dia em que colocou o ponto final, foi visitá-lo e contou a novidade. Naquela noite, ele morreu. “Isso teve um significado para mim, obviamente, mas não queria que as pessoas pensassem que meu pai morreu por sentir que agora que o livro estava escrito ele podia partir.” Mas Flanagan acha que, mesmo se pudesse, ele nem leria o romance. “E não creio que ele tenha lido nenhum dos meus outros romances. Lia poesia, gostava de jornalismo, mas não muito de romances. Nunca me senti insultado. Ele me amava, e essa é a única coisa que importa.”

Sobre como a experiência de guerra aparecia no dia a dia da família, o autor conta

que ouvia as histórias leves, engraçadas, de companheirismo, e que foi ajudado em alguns detalhes, mas não mais que isso. “A maior parte do tempo havia um silêncio, o que é compreensível, e esse livro é muito mais sobre as coisas comunicadas inconscientemente e com as quais cresci”, explica.

Ainda que o livro seja dedicado a seu pai, a história é outra. Nesta narrativa não linear elegantemente construída que acompanha toda a trajetória de Dorrigo, Flanagan constrói seu personagem para então desconstruí-lo. Seu médico traz em si todas as contradições inerentes ao ser humano. É considerado um herói de guerra, mas não concorda. Está sempre querendo, mas negando esse querer. Nunca em paz, nunca honesto consigo. Sempre lutando para sobreviver, nunca vivendo de fato – como quando conheceu Amy. Porque, afinal, esta não é uma história apenas de guerra.

“O livro é uma meditação sobre o amor escrito à sombra da morte. Se você vai escrever sobre coisas sombrias, não pode focar apenas na escuridão porque os seres humanos se revoltam contra ela. Somos fundamentalmente criaturas da esperança. E a maior expressão de esperança é o amor”, comenta. E falamos aqui de todas as formas de amor.

O autor não economiza detalhes. Os corpos esqueléticos, as surras, amigos sendo incinerados e explodindo, e o cheiro da doença, dos dejetos, da carne apodrecendo nos homens, da morte em todo lugar. “Eles fumaram para manter os mortos longe de suas narinas, brincaram para que os mortos não se apossassem de suas mentes”, diz o narrador. Acompanhamos o efeito da falta de comida e remédios, da dengue, malária, beri-béri, febre tifoide, cólera. Vemos feridas sendo limpas com colheres. Pernas amputadas com serra de cortar carne. A angústia dos que queriam só deitar e nunca mais acordar e dos que ainda tinham algum impulso de vida. A solidariedade entre os prisioneiros. E o efeito da metanfetamina nos carrascos.

Por falar nos carrascos, há uma cena interessante, em que, no meio de uma conversa sobre o prazer de decapitar alguém, o coronel recita Bashô (1644-1694), de quem Flanagan empresta o título do livro. “Cometemos um erro quando pensamos que literatura é separada da vida e que ela tem uma função e uma força moral. Porque literatura é vida, e é possível conhecer e amar literatura e ser um ser humano que faz coisas terríveis.”

Leitor de Machado de Assis, que cita livremente durante a entrevista, Guimarães Rosa, Rubem Fonseca e Chico Buarque, Flanagan diz que está encantado com a viagem e com a possibilidade de conhecer mais sobre a literatura brasileira. “Tendo crescido aqui, eu meio que descobri o meu mundo olhando para o mundo de autores latinos, e não dos americanos ou britânicos. As lutas daí não são diferentes das do meu país. Sempre achei que poderia encontrar a Tasmânia no Brasil, na Argentina e no Chile. A beleza da grande literatura é que ela faz você se lembrar de que não está sozinho.”

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