Por detrás dos óculos brancos

Antes de ser novela (da Globo, com Betty Faria) e filme (de Cacá Diegues, com Sonia Braga), Tieta do Agreste era um projeto de Lina Wertmuller, que chegou a vir algumas vezes ao Brasil para se encontrar com o escritor Jorge Amado. “Era uma figura extraordinária”, ela lembra, numa entrevista por telefone, da Itália. Sophia Loren teria sido sua Tieta, e com certeza traria para o papel a exuberância das mulheres napolitanas que interpretou para Vittorio De Sica e outros diretores importantes. Mas o projeto abortou. “Nem lembro por quê, mas com certeza foi por causa de dinheiro.”

O jovem cinéfilo talvez se pergunte quem é essa Lina Wertmuller. Não – todo mundo sabe quem é a ex-assistente de Federico Fellini que, no começo dos anos 1970, em plena erupção do cinema político italiano, fez filmes como Mimi Metalúrgico, Filme de Amor e Anarquia e Pasqualino Sete Belezas. No Dicionário de Cineastas, Jean Tulard a define como diretora de comédias satíricas. E acrescenta – “O mínimo que se pode dizer dessas obras é que não primam pela leveza”.

Lina não é de muita conversa. Aos 87 anos – nasceu em 1928 -, admite que não tem muita paciência para esse tipo de afirmação. Reflete – “Ma che voleva? Mas o que queria (o crítico)? Que eu falasse de sindicalismo e nazismo com leveza, e ainda por cima num momento em que o fascismo ressurgia com força na Itália?”

Lina assume que deve muito a Fellini. “Me há ensegnato tutto sull cine e anche sulla vita” (Me ensinou tudo sobre o cinema e até sobre a vida). Sobre Oito e Meio, é sintética. “É belíssimo.” Que lembranças guarda do filme? “Como assim, que lembranças? É um dos maiores filmes já feitos. Poderíamos ficar horas falando sobre ele, uma vida inteira.”

Lina Wertmuller conversa com o repórter na antecipação de sua próxima viagem ao Brasil – a São Paulo. A Mostra Internacional de Cinema mal completou seu primeiro fim de semana e ainda promete dez dias de programação intensa pela frente, mas já se pode falar no que será o próximo grande evento de cinema na cidade.

O 11.º Festival de Cinema Italiano começa dia 24 de novembro – mesma data do ano passado -, com homenagens a Lina Wertmuller e a outros dois grandes, Bernardo Bertolucci e Marco Bellocchio. Estão todos confirmados, mas Bertolucci, que teve de se submeter a outra cirurgia em setembro, é sempre uma incógnita por seu estado de saúde. Na última vez que se encontrou com o repórter, em Cannes, no ano da apresentação de Io e Te, o grande diretor disse, meio brincando, meio sério, que havia sido punido. “Gostava tanto de fazer travellings que virei o homem-travelling, reduzido a uma cadeira de rodas.”

O festival deve ocorrer de 26 de novembro a 2 de dezembro no cinemas Belas Artes e na Unibes Cultural. Terá uma mostra contemporânea com 16 filmes, e a mostra concede um prêmio. Entre esses filmes estão Mia Madre, de Nanni Moretti, La Vergine Giurata/A Virgem Juramentada, de Laura Bispuri, que já está na Mostra, Arance e Martello, de Diego Bianchi, Sei Mai Stata Sulla Luna, de Paolo Genovese.

Outros três filmes vão passar fora de concurso, totalizando 19 títulos. E ainda teremos filmes escolhidos pelos homenageados. Lina será homenageada com a exibição do documentário Dietro gli Occhiali Bianchi, de Valerio Ruiz. Os óculos brancos e o cabelo curto são marcas da autora, assim como o humor grotesco. Outra marca são os títulos quilométricos de seus filmes – Tutto Posto Niente in Ordine, Travolto da Un Insolito Destino nell’Azzurro, La Fine del Mondo nel Nostro Solito Letto in Una Notte di Pioggia/Dois Numa Cama, numa Noite de Chuva, Fatti di Sangue fra Due Uomini per Causa di Una Vedova: Si Sospettano Moventi Politici/Guerra de Sangue ou Amor e Ciúme, Notte d’Estate conm Profilo Greco, Occhi a Mandortla e Odore di Basilico/Noite de Verão com Perfil Grego, Olhos Amendoados e Sabor de Manjericão.

Ela ri quando o repórter diz que os títulos longos são para combinar com seu nome. Pertencente a uma família com origem na nobreza suíça, Lina chama-se, na verdade, Arcangela Felice Assunta Wertmüller von Elgg Spanol von Braucich.

Muitos de seus filmes são interpretados, em dupla ou separadamente, por Giancarlo Giannini e Mariangela Melato. O que os tornava tão especiais, a ponto de serem os atores preferidos de Lina? “Por que? Não lhe agradavam? O que mais apreciava neles era a capacidade de interpretar num tom acima, mas sem perder o registro humano.”

Política

Sobre o fato de sua estética ser política, diz – “O cinema, a arte em geral, não precisam ser políticos, mas podem e até acho que devem ser. Permitem que a gente conheça a diversidade do mundo e nossas ambiguidades.” No filme que lhe dedica Valerio Ruiz, Lina Werrtmuller viaja com a câmera do diretor por lugares que foram importantes em sua vida, e obra – a casa romana em Piazza del Popolo, as cidadezinhas entre Puglia e Basilicata, onde filmou seu primeiro longa, I Basilischi, de 1963, a antiga casa de campo do marido, Enrico Job, a praia na Sardenha do lendário Por um Destino Insólito, de 1974.

O filme-documentário, ao percorrer os momentos importantes da carreira cinematográfica e teatral de Lina, ressalta como ela trabalhou em diversos ramos das artes do espetáculo e possibilita uma dupla reflexão. Não apenas a diretora fala de seus filmes como Martin Scorsese, Harvey Keitel, Sophia Loren, Piero Tosi, Giancarlo Giannini, Rita Pavone e Franco Zeffirelli, entre outras personalidades, avaliam seu cinema e destacam sua importância.

O próprio Bertolucci escolheu Assédio Sexual, de 1998, com Thandie Newton e David Thewlis, como o filme para a homenagem que o festival lhe presta. Só para lembrar. O grande diretor fez filmes que marcaram época, como Antes da Revolução, A Estratégia da Aranha, O Conformista, Último Tango em Paris, 1900, La Luna e Beleza Roubada, Assédio, que fez originalmente para TV, foi um trabalho que não repercutiu muito, pelo menos no Brasil, mas a história da imigrante africana que vai trabalhar como doméstica na casa de um pianista inglês em Roma propõe aquele tipo de tensão erótica e social que atrai o autor. A apresentação permitirá, agora, a redescoberta de uma obra sempre considerada “menor”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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