Paula Dipp presta homenagem a Caio Fernando Abreu

Não sou muito chegado a literatura de Caio Fernando Abreu. Ele escreveu livros com nomes estranhos – “O Ovo apunhalado”, “Dragões não conhecem o paraíso”, “Morangos mofados”, “Pedras de Calcutá” e outras coisas que sugerem surrealismo, mas não são surrealistas.

Sempre que tentei ler seus contos, me senti estimulado a fazer outra coisa. Não é culpa dele, nem minha: existem alguns elementos que levam um sujeito a gostar da obra de um escritor, mas os principais são dois.

Um é de ordem emotiva e outro racional: o cara se identifica com o que está escrito ou ajudado por elementos canônicos conclui que aquilo é dez. Se tirar o cânone da jogada, podemos incluir outro elemento racional: a novidade, o revolucionário, que precisa ser bom para se firmar. Caso contrário, não funciona.

Claro que às vezes alguém gosta de um autor por ele ser um sujeito legal, divertido, original ou para usar uma expressão dos anos 70, “muito doido”. Charles Bukowski pertence a esta categoria. Não que seja muito bom no sentido tradicional e novidadeiro, mas é tão doido que acaba ficando bom.

Ou seja, ele narra o lado escuro da sociedade com tanto desprezo pelas convenções, que conquista simpatia. Assim, o cara “legal” e “doido” permanece se consegue passar este “legal” e “doido” para a sua literatura. Caso contrário, também não funciona.

Se Caio tem algum mistério, não vi o queijo e não cai na ratoeira. Estas coisas acontecem. Também não gosto de Cazuza. Achoo afetado, histriônico, às vezes histérico. Acho a obra dele supervalorizada.

Antes de um esperto perceber que se trata de dois homossexuais assumidos que morreram de Aids e me grude o rótulo homofóbico, acrescento que gosto de Proust, Gide e Renato Russo, este último talentoso e sensível. E todos pertencem à “confraria”. Se necessário acrescentar mais, gosto de Oscar Wilde, Francis Bacon e Da Vinci. E posso espichar a lista, sem esforço.

Portanto nada tem de preferências sexuais. Pois bem. Se não tenho interesse pela literatura de Caio, não faria sentido ler um livro sobre ele já que um escritor se justifica por sua obra e não sua vida. Se ela tem interesse, a gente quer saber alguma coisa do sujeito para ligar cousa e lousa.

Caso contrário, não. Mas o mundo não é perfeito: eu gostei de Para sempre teu, Caio F. – Cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Abreu, de Paula Dipp (Editora Record, 504 páginas, R$ 58,00).

Não é bibliografia, não é memória e não fica pendurado em Caio. É um livro sobre o sujeito que reúne gente dos anos 80, falando da época e do escritor, esboçando um painel interessante, fazendo um estudo informal sobre uma geração.

Nos anos 80 a misoginia atingiu patamar impensável nas décadas anteriores, a liberdade sexual produziu falta de compromisso e frivolidade e a solidão foi companheira de pessoas que raramente ficavam sem companhias.

De uma hora para outra tudo entrou em parafuso e virou paranóia: a Aids pintou no pedaço. A cabeça de quem estava no olho do furacão refletia este turbilhão. Caio, assim como Cazuza e depois Renato Russo, foram personagens símbolos. Cada qual com seu jeito.

Um se expondo até excessivamente (Cazuza), outro procurando refúgios (Caio) e o terceiro dissimulando (Renato). E não tem como falar deles, sem falar dela, da época em que viveram. E vice-versa.

Um exemplo no livro de Paula Dipp: “Esta foi uma das razões pelas quais os homossexuais se tornaram o principal ‘grupo de risco’ e a ‘aids’ virou ‘câncer gay’. Parecia perseguição, retrocesso, uma bordoada em todos aqueles anos de liberação sexual. Todo mundo queria saber qual era o mistério daquele mal sobre o qual havia muitos rumores e pouca informação. A súbita condenação dos gays a uma vida sem graça, ou seja, sem sexo, e pesada de preconceitos, somada à morte trágica da amiga Ana Cristina, acabou por transformar a experiência carioca de Caio num pesadelo”.

Uma época solar que virou pesadelo pode ser uma boa definição para os anos 80. O livro recompõe o movimento de certa intelectualidade do período, escritores como Reinaldo Moraes, editores que mudavam a cena como Luiz Schwarcz, artistas que deixavam suas províncias para aglutinar em São Paulo.

Nomes como Joyce Pascovitch, Vânia Toledo, Antonio Maschio, José Marcio Penido, Luciene Adami, Antonio Bivar, a própria autora e outros, pulando de bar em bar com nomes tão variados quanto Pirandello, Paulicéia Desvairada, Ritz, Rivera, Aeroanta, Madame Satã, Bar das Putas, Sujinho e outros. Eles entram no livro narrando episódios aparentemente banais que juntos formam mural sobre o comportamento no período.

O título do livro se inspira na frase de Caio ao terminar as cartas que escrevia aos amigos, em especial a Dipp – a quem chamava às vezes de Demônio favorito e outras de Paula Deep.

As cartas sustentam e dão credibilidade a reconstrução da época. Mas as angustias que emergem não são apenas de Caio, o que poderia levar o livro a ser mais um destes longos e tediosos testemunhos do gênero “ah, como ele foi genial e infeliz!”.

É sobre uma época e nele a autora deixa suas impressões: “Meu amigo criticava a forma como eu vinha conduzindo a minha própria vida, devastando o meu corpo e minha alma, colecionando amores vãos, engravidando sem pensar”.

Mais adiante ela acrescenta: “a nova atitude dos anos 80 combinava mais com um belo samba que dizia ‘pra que rimar amor e dor’, mas viver a liberdade sem culpa era quase impossível”. Angustias de uma época, hoje coisas passadas.

O que faz o livro interessante, apesar de volumoso, é a sua despretensão: ele vai conquistando o leitor com um lero-lero agradável. Dipp construiu o livro como alguém que abre um baú de cartas e fotografias velhas ao lado de um grupo de amigos e a cada carta e foto, pergunta: “Você lembra disso?”. Seguida de comentários e reminiscências. Funcionou.

Claro, no meio do caminho, as pessoas jogam flores sobre o finado. Ninguém recorda defunto para falar mal, a não ser tipos que foram muito ordinários. O que não é o caso de Caio, que terminou a vida ao lado da família, em Porto Alegre, escrevendo crônicas e cuidando de um jardim. Um fim poético. Que me lembrou um pouco Wittgenstein. Pelo jardim, claro.

O livro se assemelha a segunda parte do filme “Viver” (Ikiru), de Kurosawa, na qual pessoas que conheceram Kanji Watanabe (Takashi Shimura) reconstroem o passado através de suas experiências pessoais e chegam à conclusão de que em vida o defunto foi um sujeito exemplar. Por esta perspectiva, o saldo é positivo para o personagem, já que este tipo de “sessão” contagia.

O leitor fecha o livro e os olhos e imagina que a época, embora cheia de apreensões, foi interessante. E – se viveu aqueles anos – pode até perguntar a si mesmo o que andou fazendo.

O livro de Dipp tem a virtude de ser uma porta aberta ou convite para se mergulhar nos anos 80, num período, embora angustiante, cheio de agito. Talvez melhor que os dias atuais.