Os xetás não estão em extinção

d81.jpgO Jornal Gazeta do Povo publicou reportagens assinadas por Érica Busnardo e Guilherme Voitch, nos dias 6, 7 e 8 de março de 2005, que deixaram a desejar pelo seu cunho sensacionalista, a começar pelo título O fim de um povo paranaense. Nas três reportagens foram veiculadas interpretações não condizentes com o universo sociocultural indígena e atribuídas afirmações que a antropóloga Carmen Lucia da Silva afirma não ter declarado. Carmen é doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília, pesquisadora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Paraná, responsável pela unidade de pesquisa de Etnologia Indígena do museu e tem dissertação de mestrado e tese de doutorado nesta área de conhecimento, defendidas a partir de pesquisas realizadas junto aos xetás desde 1996. O objetivo deste artigo é reparar informações não condizentes com a realidade histórica, social e cultural xetá.

Extermínio

Habitantes originais da região conhecida historicamente como Serra dos Dourados, na margem esquerda do Ivaí e seus afluentes desde a foz do Rio Paraná , ?os xetás atualmente não são apenas oito, mas 86 (considerando a atualização do senso em fevereiro de 2005)?. As reportagens de 6 e 7/3 dizem que seus descendentes não podem ser considerados xetás, devido ao casamento interétnico, e que estão em processo de extinção. Pelo contrário, estão em processo de recuperação e resistência étnica. ?Desde o período em que iniciei a pesquisa até os dias atuais, a população xetá cresceu, praticamente dobrou?, observa a pesquisadora.

A idealização de casamentos entre xetá por parte de indigenistas, considerando a situação em que vivem, não foi possível, pois os xetás estão dispersos por razões alheias à sua vontade. De acordo com a antropóloga, ?a alternativa de resistência e sobrevivência foram os casamentos interétnicos entre xetás e não-índios, ou entre xetás e kaingang, ou entre xetás e guaranis. Caso eles tivessem continuado a viver juntos, as regras de casamentos preferenciais do grupo, estas poderiam ter sido rearranjadas e adaptadas ao presente vivido por eles, a exemplo de outros povos da mesma família lingüística (tupi-guarani)?.

De qualquer maneira, ela destaca, ?para os xetás, a idéia de pertencimento não está na quantidade de sangue que uma criança tem de seus pais. A questão é sociológica e cultural. Do ponto de vista antropológico, esse modo de pensar a descendência entre os povos indígenas a partir do viés biológico está ultrapassado desde a década de 30. Os povos atualizam e reinterpretam regras tradicionais a partir dos processos históricos que experienciam. Eles têm seu modo de reconhecer o igual e o diferente e de excluir e incluir aqueles que adotam. Quem define se uma criança, jovem ou adulto é xetá são eles. Filhos, inclusive os adotivos, e netos são considerados pelos mais velhos como xetás, e estes por sua vez se consideram enquanto tal?.

?A regra de descendência tradicional xetás é patrilinear, ou seja, ela é repassada pela linhagem paterna. Atualmente, em função das condições em que vivem, esta regra foi reinterpretada e os filhos de mulheres xetás com não xetás também são considerados xetás. Hoje é possível observar tanto os filhos de homens como de mulheres xetás se identificando e sendo identificados como membros do grupo?, explica a pesquisadora.

Estimativa

A reportagem de 6/3 atribuiu a afirmação de que os xetás atuais são sobreviventes de um grupo que, segundo estimativas de antropólogos, era formado por 450 indivíduos. Atenção, diz a antropóloga, ?as estimativas não foram feitas por antropólogos, mas pelos xetás, que são os detentores da memória de seu povo, e isto foi divulgado em minha pesquisa. Não se pode tirar dos xetás essa agência e autoria de seus conhecimentos. Ao afirmar que o grupo tradicional era composto por 400-450 pessoas, os xetás contrariam os documentos escritos nos quais se estima ter existido 200-250 indivíduos?.

Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestranda no programa de pós-graduação em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.

E-mail: zeliabonamigo@uol.com.br

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