O que é mesmo a história?

d6a.jpgComeço por confessar que não sou, nunca fui nem pretendo ser historiador, mormente nesta altura do ?campeonato?… Não obstante, sempre me senti profundamente atraído pela Ciência & Arte de Heródoto e Flávio Josefo, de Tucídides e Plutarco, de Júlio César e Tito Lívio, de Froissart e Fernão Lopes, de Vico e Thiers, de Boch e Michelet, de Spengler e Pirenne, de Alexandre Herculano e Oliveira Martins, de Capistrano de Abreu e Pandiá Calógeras, de Arnold Toynbee e tutti quanti. Assim mesmo, resolvi dar a réplica necessária à pergunta que formulo no título do presente artigo/crônica.

 Há mais de vinte séculos, Cícero respondia com palavras emblemáticas a essa indagação singela. Escrevia assim o maior orador latino, o único que rivaliza com o grego Demóstenes: ?Historia est testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetustatis?. Fica assim o luminoso pensamento cicerônico no vernáculo camoniano: ?A história é a testemunha do tempo, a luz da verdade, a vida da memória, a mestra da vida e a anunciadora da antigüidade?.

 Séculos mais tarde, Cervantes formularia, mais ou menos na linha do romano, estas palavras que prescindem de tradução, na medida em que o português e o espanhol são quase irmãos siameses: ?Es la história émula del tiempo, depósito de acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo porvenir?.

 Mas a natureza, a essência, o objetivo, as razões e a metodologia historiográfica têm preocupado, ao longo dos séculos, muitas cabeças supremamente pensantes.

 Eis o que afirma o inglês Gibbon, ?inspirado? sem dúvida no autor do Cândido: ?History is, indeed, little more than the register of the crimes and misfortunes of mankind? (A história nada mais é do que o registro dos crimes, loucuras e desventuras da humanidade).

 Existe aí, como claramente se vê, um ?eco?(para não falar em plágio, que é um termo desagradável) do pensamento do sempre irônico, sarcástico, cético e cínico Voltaire: ?L?histoire n?est que le tableau de crimes et des malheurs de l?homme et de la condition humaine?(A história é apenas o quadro dos crimes e das infelicidades do homem e da condição humana).

 Por sua vez, o lusitano Alexandre Herculano (de Carvalho Araújo), mestre da nossa língua admirável, com a sua palavra máscula e cosmovisão sóbria, assevera: ?A história pode muito bem comparar-se a uma coluna polígona de mármore de Carrara ou de Estremoz. E quem quiser conhecê-la bem, deve andar ao redor dela, contemplando-a em todas as suas faces. (…) Em última análise, compete-lhe averiguar minuciosamente, conscienciosamente, como foi a existência dos homens, das sociedades, das gerações que nos precederam. Eis aí a função essencial da História com maiúscula?.

 Penso que se torna imprescindível, ?hic et nunc?, neste rol de citações que se me afiguram fundamentais, não esquecer a palavra lúcida e marcante de um brasileiro: Afrânio Peixoto. Diz ele: ?A história é a consciência, em lenda, tradições, vestígios, ruínas, monumentos, escritos, esse divino instinto do homem que, além da perenidade da espécie conseguida pela geração, logrou para si, exclusivamente, a eternidade subjetiva da memória?. Eu apenas eliminaria, na frase, um termo supérfluo: lenda. Até por que a lenda é, por assim dizer, a antítese, a negação da História.

 E só agora me lembro (mas antes tarde que nunca) de Bernard Shaw. Não poderia faltar aqui a palavra de outro mestre da ironia e do sarcasmo. Eis as suas palavras ácidas, ferinas, corrosivas: ?We learn from history that we learn nothing from history.?(Aprende-se da história que nada se aprende da história).?Mirabile dictu.?

 Agora, a palavra de outro historiador luso, João Ameal, praticamente desconhecido no Brasil, que nos dará aquela que eu considero a mais completa definição da serva dessa musa bela e impoluta que se chama Clio, dileta filha de Júpiter e Mnemósine. (Uma curiosidade: João Ameal é o nome literário do Visconde de Ameal, D. João Barbosa de Azevedo Bourbon Aires de Campos. Um nome que certamente faria sucesso em Itu…) A citação é necessariamente longa. Escreve ele, na primeira parte do seu longo prefácio da ?História de Portugal?: ?O que é a História? Uma ciência? Uma arte? Uma ética? Para uns, a função do historiador consiste em pesquisar arquivos, analisar documentos, apurar, com paciência e método, a certeza de uma data, a identidade de uma figura, a veracidade de uma testemunha, a minúcia de um acontecimento, formular mesmo certas leis, derivadas da análise efectuada: é a História-Ciência. Para outros, consiste em traçar belos quadros, num estilo sugestivo e eloquente, com descrições coloridas de cenários e de atmosferas, largos movimentos de turbas, lances culminantes de tragédias, de apoteoses e de batalhas: é a História-Arte. Para outros ainda, consiste em apresentar uma galeria de modelos na qual se possa distinguir o bem e o mal, o exemplo a seguir e o erro a evitar, e, portanto, de onde resulte uma série de normas úteis para a orientação dos contemporâneos: é a História-Ética. Quanto a mim, a História não é apenas Ciência, Arte ou Ética. É, ao mesmo tempo, as três coisas ? e algo mais.(…) Se me pedissem que arriscasse uma definição, eu iria sugerir esta: para o verdadeiro historiador, a História constitui um exame de consciência?.

 Mantive, intencionalmente, a atual ortografia portuguesa, para demonstrar que as suas divergências (que eu prefiro considerar variantes) em relação à ortografia brasileira, são mínimas: limitam-se a um ?c? mudo na palavra efetuada e à ausência do trema no vocábulo eloqüente. É muito? Eu direi que é quase nada.

 Para concluir, deixando para trás as citações enriquecedoras (da mente e do espírito), eu estou convencido de que o homem, para lá das clássicas e bem conhecidas definições que o caracterizam, pode ser também considerado, além de animal racional um animal que faz história. Aliás, o único a fazê-la.

 João Manuel Simões é poeta e prosador. 

Voltar ao topo