O Livreiro de Cabul revela drama das afegãs

A jornalista norueguesa Asne Seierstad não é a primeira mulher – ocidental ou oriental – a denunciar as humilhações sofridas pelas mulheres afegãs, mas seu segundo livro, O Livreiro de Cabul, lançado há três anos lá fora e publicado recentemente no Brasil, pela Editora Record, fez um barulho bem maior que a média. Já foi traduzido em 30 países, vendeu mais de 2 milhões de exemplares e não deve demorar muito para atingir o patamar de O Caçador de Pipas, de Khaled Hosseini.

(AE) – Mas, ao contrário do escritor afegão, Asne não trilha um caminho lírico para chegar lá. Força de hábito. Filha de um cientista político e de uma feminista, ela é correspondente de guerra. Não esquece disso nem por um minuto.

Aos 36 anos, loira, alta e bonita, Asne enfrentou uma batalha judicial por seu best seller. O autor do processo contra ela foi justamente o homem que a acolheu de braços abertos em sua casa, em Cabul, há quatro anos, quando decidiu acompanhar durante quatro meses o cotidiano de uma família afegã.

Determinada a descrever o que viu, ela decidiu transformar a reportagem num relato literário, mudando os nomes dos personagens reais como forma de preservar o livreiro de Cabul, Shah Mohammed Rais, e sua família. Não adiantou. Rais, chamado de Khan no livro, foi aos tribunais exigir reparação.

Motivos ele tem de sobra. Após a leitura, resta pouco da imagem do livreiro liberal que ela conheceu em 2002, após passar seis semanas no deserto próximo à fronteira do Tajiquistão, nas montanhas do Hindu Kush, em novembro de 2001.

Quando o Talibã caiu, Asne Seierstad foi com a Aliança do Norte para Cabul. Lá conheceu o livreiro Shah Mohammed, que, segundo ela, era ?um homem elegante e grisalho, dono de uma livraria que tinha as prateleiras abarrotadas de obras literárias em muitos idiomas?.

Grisalho ele continua a ser, mas a impressão de elegância foi sendo substituída, dia após dia, pela constatação de que Shah Mohammed Rais não era muito diferente dos opressores talibãs do qual ele mesmo foi vítima. Primeiro foram os comunistas que queimaram seus livros. Depois, foram pilhados pelos mujahedin para, logo em seguida, serem novamente queimados pelos talibãs.

O livreiro foi preso e aproveitou o tempo que passou atrás das grades para estudar a história do Afeganistão. Em 1992, durante os ataques dos muhajedin, ele buscou refúgio no Paquistão e, ao voltar, viu sua livraria destruída como a biblioteca nacional de Cabul. Comprou livros raros por uma bagatela, escondeu mais de 10 mil volumes num sótão e, hoje, vive muito bem, graças à ignorância alheia.

Segundo a escritora norueguesa, o livreiro, formado em engenharia, foi muito ?democrático? e educado ao abrir sua casa para que ela lá passasse uma temporada. Asne reconhece que o seu personagem Sultan Khan – para usar o nome-fantasia – está longe de ser o representante fiel do fundamentalista afegão, mas identifica nele quase todos os traços de um chauvinista típico, mantendo suas duas mulheres e cinco filhos sob linha dura.

Escondida sob a burca, a jornalista norueguesa viu mais do que poderiam suportar seus olhos. Viu viúvas – que dependem de ajuda internacional para sobreviver – serem exploradas sexualmente, viu o filho adolescente do livreiro ser obrigado a trabalhar mais de 12 horas e impedido de estudar – por um pai livreiro e culto -, uma adúltera ser sufocada por seus três irmãos e, como se não bastasse, a humilhação da primeira esposa do livreiro depois de um novo casamento do marido com uma garota de 16 anos. Sultan Khan, ou Mohamed Ris, era, enfim, um tirano.

Asne, cansada de usar a burca, livrou-se dela para escrever o livro. Esqueceu a discrição e narrou, por exemplo, o que viu num balneário público freqüentado pela mãe do protagonista. Também aproveitou para contar como os filhos do livreiro abusavam de crianças miseráveis que pediam esmolas nas ruas. O livreiro, naturalmente, não gostou do que leu. Exigiu dela uma indenização por danos morais. Asne não se abalou. Descobriu com o livro que não é uma relativista.

Sabe que a cultura afegã é bem diferente da norueguesa, mas diz que ?uma mulher é uma mulher, sofre do mesmo jeito, seja no Afeganistão ou na Noruega?. Se um homem bate numa mulher na Noruega, argumenta, vai para a prisão. Já no Afeganistão, autonomia e dignidade são duas palavras que não cabem no vocabulário de fundamentalistas quando relacionadas à condição feminina.

Depois de O Livreiro de Cabul, a escritora norueguesa já escreveu outro livro, 101 Dias, em que conta a invasão de Bagdá pelas tropas americanas. Ela foi um dos poucos jornalistas que permaneceram na cidade quando essa começou a ser bombardeada.

Sobre a proposta de continuar como correspondente de guerra, Asne está disposta a seguir os passos dos pioneiros do ?new journalism?. Escolheu como tática um cruzamento híbrido entre jornalismo e literatura. Os leitores, a considerar as vendas de O Livreiro de Cabul, aprovaram.

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