O alarde do silêncio

“Por que escrevo e por que não falo? Por que permaneço de voz calada embora tenha tantas coisas a dizer?” (129). Este é um trecho do livro Em Liberdade, escrito por Silviano Santiago, uma leitura sempre bem lembrada. Nele o autor cria um diário que, supostamente foi escrito por Graciliano Ramos quando este deixou a prisão. Mas não se engane o leitor, pois Graciliano é Silviano. Ou será que Silviano é Graciliano? Talvez isso não importa. Como foi dito no início deste texto o que importa é o que está escrito e não o que é falado. O papel é benevolente na visão de Silvi ou Graci, pois este “escuta, escondendo dos olhos o que o coração não pode ver”. Por esta visão define-se que os ouvidos alheios não são “benevolentes ou submissos”. Obviamente que, diferentemente do papel, os ouvidos alheios respondem. Pode-se considerar esta como uma questão central no diário: o escrever como subterfúgio ao som articulado; o escrever como livre-arbítrio incondicional do ser. Ou seja, o sonho da liberdade absoluta.

Para elaborar o primeiro parágrafo desta resenha, optei por este trecho do livro que considerei uma chave imensurável, a qual, pressuponho, abrirá todas as portas. Ou quase todas. E que portas são estas? Pergunto a mim mesma. Antes de qualquer coisa, gostaria de, como fez Otto Maria Carpeaux no Prefácio do Romance Angústia de Graciliano Ramos, “construir uma teoria para apanhar a minha vítima” e assim “vou construir meu Graciliano Ramos”, como fez, posteriormente o próprio Silviano Santiago. Há chaves disponíveis e algumas portas entreabertas. Não me interesso por nenhuma delas. Alguns artigos e sugestões de como fazê-lo. Desejo antes a porta trancada, indecifrável. Aquela que se projeta à minha frente, reconhecida como a porta da criação e do poder da palavra escrita. Eis porque “escrevo e porque não falo”, como se manifestaria Graciliano pelas mãos de Silviano.

Sendo assim, para moldar este Graciliano, escritor de diário, Silviano usou um tipo diferente de argila. A modelagem se inicia no movimento de fechar o livro Memórias do Cárcere, com a pergunta: O que se passou com Graciliano quando os portões do cárcere se fecharam às suas costas ao deixar a prisão, após 10 meses de espera? Quem poderá saber? Quem poderá dizê-lo? Ninguém responderia. No entanto, este interregno é passível de escritura. A invenção de um fato tem boa aceitação no papel. A recriação dos detalhes é bem vinda aos olhos submissos do papel. A argila se molda ao papel. Silviano inventa seu Graciliano com massa de argila e papel.

Conseqüentemente, a concepção deste diário é uma espécie de acordo ou uma conversa de escritor para escritor e, como íntimos que são, falam de coisas superiores ou muitas vezes banais e irrelevantes, mas compreensíveis entre eles. Desnorteantes, entretanto, para os que acompanham a conversa do lado de fora. Por isso o interesse em também, por protesto, construir o meu Graciliano, só que, obviamente com os contornos determinados por Silviano.

Portanto, chega de conjecturas e outros rodeios. É preciso dizer que a prisão de Graciliano fez parte da política de Getúlio Vargas, àquela época, quase ditador, de perseguição aos comunistas. O cenário da época conta com ilustres personagens como José Lins do Rego, que hospedou Graciliano em sua casa, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Alceu Amoroso Lima, Oswald e Mário de Andrade, Rubem Braga, Manuel Bandeira, entre outros. Todos eles passam por Graciliano em rápidos encontros. O personagem Graciliano refere-se também a Plínio Salgado, Presidente da Aliança Integralista Brasileira e que também participou da Semana de Arte Moderna. Relata os conflitos existentes entre ele e a esposa Heloisa. Amarga grande inquietude diante do fato de não estar empregado e em condições de manter a família.

É por meio do Romance de Silviano que Graciliano vai ganhar espaço para empreender seu projeto reflexivo. Essencialmente, o diário é um fabuloso ensaio sobre o papel social do escritor e o choque psicológico disseminado pela imposição da realidade factual. E este escritor vai advertir e cobrar do leitor uma postura mais contundente em relação a sua escritura.

Posteriormente e, somado ao aspecto anterior, o amálgama Silvi-Graci, se reencontra ao redigirem o tratado filosófico existencialista, contido também no Romance e, neste momento, Silviano, por meio de Graciliano, vai expor as lições existencialistas de André Gide, assunto da tese de Silviano em Sorbonne. São feitas duas indicações diretas do autor. Uma na página 167, quando comenta uma observação de Oswald: “… investindo-se violentamente contra André Gide, que apenas ajuda os fascistas com seu recente livro de viagens…”; ou “Todos os jornais que leio nos últimos tempos, trazem referência a Le Retour de L’URSS, de André Gide”(168). Supõe-se que ao fazer referência à exatamente esta obra de Gide, Silviano por meio de Graciliano, teve a intenção de levantar a discussão referente à dúvida vivida por Gide e até por Graciliano em relação ao Socialismo Soviético. Considerando ambos como seres humanos ávidos de liberdade. Em seu livro De Volta da URSS de 1936, Gide critica o Comunismo. No Romance de Silviano, o personagem Graciliano também faz seu questionamento, comparando os Comunistas aos Integralistas na medida que estes conseguem “eliminar o direito a dúvida na reflexão social ou política”(170). Por este tipo de dúvida, Graciliano já não era bem visto pelo Partido, já que não abria mão de sua individualidade. Sobre esta individualidade em oposição à orientação partidária, Gide destaca: “Pretendo continuar profundamente individualista, na plena aceitação comunista e até mesmo em favor do Comunismo, porque minha tese sempre foi esta: é particularizando-se que cada indivíduo servirá melhor a comunidade” (trecho do Diário-1939). Os Comunistas consideram o Premio Nobel de Literatura entregue a Gide em 1947 como “uma paga ao servilismo”, dada a um “lacaio do capitalismo internacional”.

Talvez tenha sido longa demais esta justificativa, ou esta tentativa de comparar os dois escritores trabalhados por Silviano Santiago que neste tablado apresentam-se como lutadores e defensores da arte como um “ato pessoal”, conforme Gide. A partir deste ponto entra o fator existencial. Existir enquanto ser livre: “O Mar é. Eu sou. Não há adjetivos. Apenas a afirmação magnífica da necessidade de existir, viver, deixar escorrer energia e força no presente”(40). Seria o existencialismo pretendido por Gide e absorvido posteriormente por Sartre que faleceu em 1980, ano anterior a publicação do Romance de Silviano?

Mas continuando e, em resposta ao “por que escrevo…”, o Romance, através de seu escritor também vai criando uma narrativa sobre os últimos momentos do poeta árcade Cláudio Manoel da Costa. A idéia surgiu com o sonho do personagem Graci e foi totalmente incorporado por Silvi. A quatro mãos constroem em abismo ou em uma sucessão de espelhos, o conto desconhecido sobre a Inconfidência Mineira. Cláudio na prisão. Cárcere. Cerceamento da liberdade. Cláudio poeta. Trabalhador da palavra. Simulação de suicídio. Forca. Morte coincidente com a de Wladimir Herzog nos anos de repressão da Ditadura Militar. Por isso, a “Nossa Senhora”, que pediu a prisão e a execução dos Incofidentes pode ser reconhecida como “A Redentora”, codinome da Revolução ou Golpe Militar de 1964. Considerando que as instruções para regimes autoritários são as mesmas: “é preciso policiar mais os cidadãos. Saber como falam e agem, como pensam…”(208).

Além de confrontar a discussão político-ideológica com a filosófico-existencial, Em Liberdade constitui um imenso painel metaficcional, assim observado: O fazer incansável do próprio diário; A presença de romancistas e poetas conhecidos; A análise da obra de José Lins do rego em oposição ao estilo Graciliano; O texto jornalístico e o texto do Romance; A escolha do assunto a ser narrado; O Romancista e seu papel; A participação do leitor; A teoria literária indicada – ao falar sobre seu livro a Terra dos Meninos Pelados em que diz “Estão vendo que optei por uma narrativa de caráter alegórico” (145); Menciona implicitamente, A Origem do Drama Barroco Alemão de Walter Benjamin de forma a levantar discussão sobre o carnaval e a morte, incluindo a teoria sobre a carnavalização e as funções da máscara.

Dentre todos estes aspectos, o mais enigmático está no capítulo escrito no dia 08 de março, páginas 235 e 236. Nele, o narrador argumenta acerca da imaginação e da natureza do vivido em confronto com a experiência. Acrescenta que é por meio do vivido que se atinge o “salto no ar” que “é uma viagem que se faz nos limites da lucidez e da loucura”.(236).

A condensação da loucura com a lucidez resultaria nos arcabouços da intuição? Este é exclusivamente mais um dos corredores do labirinto pretendido pelo Romance e, que de fato ocorre, com o surgimento de portas entreabertas e falsas saídas.

OBRA: EM LIBERDADE. 4.ª ED. RIO DE JANEIRO : ROCCO,1994.

AUTOR: SILVIANO SANTIAGO

OBS: sobre André Gide: Vida e Obra- o texto é parte da Edição- Biblioteca dos Prêmios Nobel de Literatura (1947)- O Imoralista. Rio de Janeiro : Ópera Mundi, 1970.

Maria Helena de Moura

Arias é jornalista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual de Londrina. E mail:
helenarias@uel.br

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