Nas lentes de Cesário Verde

Na parede da estação do metrô que leva à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, os versos surgem em grandes letras ?Se eu não morresse, nunca! E eternamente/ Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas?. Porém são poucos os que percebem o valor de tais versos; alguns sequer sabem que pertencem a Cesário Verde, um poeta de um livro só, póstumo – que soube, como nenhum outro, fotografar com palavras. Entre Gil Vicente, Camões, Eça de Queirós, José Régio, Fernando Pessoa e Saramago, a boa literatura portuguesa, quando vista, acaba se resumindo a poucos nomes, não permitindo a todos conhecer o que mais trazem os ventos da ?Terrinha?.

A princípio realista – as obras são da segunda metade do século XIX -, Cesário Verde viu, e sentiu, no urbano e no cotidiano um potencial lírico muito grande. De calçadas, prédios, pessoas, carros, louças e demais subterfúgios da cidade o poeta construiu sua poesia, sem se limitar a meras descrições da realidade. Imparcialidade e subjetividade se misturam ao longo das estrofes e com uma sensibilidade ímpar ele escreve, fazendo com que cenas comuns sejam, ao serem lidas, vistas como seqüência de imagens do puro impressionismo ?E eu, de luneta de uma lente só,/ Eu acho sempre assunto a quadros revoltados/ Entro na brasserie; às mesas de emigrados/ Joga-se, alegremente, e ao gás, o dominó!?

E, enorme, nesta massa irregular De prédios sepulcrais, com dimensões de montes, A dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
(11ª estrófe/ parte IV)

Cesário Verde apresenta traços românticos, ao se referir aos temas, como amor, mulher e morte, ironicamente, também pela sensibilidade de seu texto. O Parnasianismo, não seguido à risca, também aparece, na precisão métrica de seus versos, a maioria de alexandrinos (doze sílabas poéticas), e na estruturação dos poemas, com estrofes e idéias sempre bem organizadas, geralmente em quadras (quatro versos).

Mas ele é realista e lido com mais atenção, em toda sua obra é fácil notar, na sinceridade das cenas do corriqueiro, que o realismo de Cesário se aproxima ao Naturalismo, ao tirar poesia do popular e até do grotesco. Entre tanta objetividade, surgem as sensações, intimamente descritas, assim como o dia-a-dia citadino, é aí que passa a se identificar com os impressionistas, que na França começavam a agir. Alguns críticos, como é o caso de Adolfo Casais Monteiro, consideram até que o poeta, ao misturar o físico e o sinestésico, se aproxima do surrealismo. Enfim, Cesário Verde representa sua época, se aproxima às tendências e antecipa as vanguardas, entre elas o Modernismo. O poeta é bastante lembrado por modernistas, inclusive citado por Fernando Pessoa, nos heterônimos Álvaro de Campos e Alberto Caeiro.

Social, reflexivo e cotidiano

O que chama atenção, no pouco apreciado Cesário Verde, são ainda a capacidade de descrição, adjetivação e enumeração; o uso de vocábulos comuns de trabalhadores, vindos de suas atividades, comerciante na cidade e homem do campo. Era com essa linguagem que o povo, novo leitor do século XIX, se identificaria.

?Dó da miséria!… Compaixão de mim!…?
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-nos sempre esmola um homenzinho idoso,
 Meu velho professor nas aulas de latim!
( 11ª estrófe/ parte III)

Porém, no estilo do poeta, é a linguagem visualista que aqui se ressalta. O que é fotografia se não um recorte, de uma determinada cena, no tempo e no espaço? Esse mesmo recorte é comum nos versos de Cesário Verde. Ao escrever ele caminhava pelos bairros de Lisboa, observava e, como que em um flagrante, selecionava e fragmentava, da realidade que via, um instante. Ao ler seus versos, paisagens, pessoas, objetos da cidade, perspectivas diferentes, cores, luzes e formas são o que ficam. Mais importante do que o verbo é o olhar e conseguir imaginar o que trazem os poemas, cujo sentido somente vem de uma seqüência de imagens, construídas com a objetividade subjetiva comum ao poeta, como é percebido em O Sentimento dum Ocidental.

Nájia Furlan é jornalista

Uma vida breve, assim como a obra

Nascido em fevereiro de 1855, e falecido em julho de 1886, em Lisboa, José Joaquim Cesário Verde era filho do comerciante e agricultor José Anastácio, e de D. Maria da Piedade, tendo quatro irmãos: Joaquim Tomás e Maria Júlia, que morreram vítimas de tuberculose, Adelaide Eugênia, que também morreu precocemente, e Jorge.

Mesmo vivendo na capital, desde a infância Cesário teve contato direto com a natureza e o campo, durante as temporadas que passava com a família na quinta Linda-a-Pastora, onde estava sempre atento às atividades do pai, como a produção e exportação de frutas e vinho.

Na cidade, Cesário estudou os primeiros passos em escola particular, porém, foi no estudo secundário, em uma escola acadêmica, que ele começou a se interessar pela poesia.

Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
(3ª estrófe, parte I)

Com tendências liberais, socialistas e anticlericais, adquiridas do pai, Cesário Verde matriculou-se no Curso Superior de Letras, em 1873. O gosto pela literatura crescia sempre mais, no entanto, como trabalhava na loja do pai e cuidava da produção da quinta da família, Cesário escrevia os poemas nos intervalos de suas ocupações. Isso faz com que alguns críticos o considerem um pouco retraído em sua atividade poética.

Os primeiros poemas A Força, Num tripúdio de corte rigoroso e Ó áridas Messalinas foram veiculados no Diário de Notícias, já em 1873, e Eu e Ela e Lúbrica no Diário da Tarde. A partir de então, sempre era publicado, nos diários, algum poema de Cesário Verde, apesar de, na época, ser de pouco prestígio, principalmente por não fazer parte do grupo dos letrados e intelectuais. Era conhecido e discutido especialmente pelos colegas mais próximos.

A tuberculose, doença que vitimara seus irmãos, também perseguia Cesário que, quando se sentia um pouco fragilizado, se retirava no campo, como era de costume na época, em contato com o ar puro e uma vida que muito lhe trazia satisfação. Foi do campo que ?brotou? o poema Nós, publicado em 1884, na Revista Ilustração.

Em 1886, sem nunca ter se preocupado em organizar sua produção literária, Cesário Verde morreu, vítima de tuberculose. No ano seguinte, um grande amigo da faculdade, e admirador, Silva Pinto, reúne os poemas e publica O Livro de Cesário Verde, em memória ao amigo.

Cronologicamente inserido no Realismo, e apesar de um pouco limitado em sua atividade poética (em quantidade de poemas), o que diferencia a originalidade de Cesário Verde dos demais poetas da época e chama a atenção é a presença de traços um tanto quanto ?atemporais? e diversificados em seus poemas.

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