Teatro

Miguel Falabella dirige a peça ‘O Homem de La Mancha’

Um enorme barco voador, singrando as nuvens – essa imagem poética abre O Homem da La Mancha, musical dirigido por Miguel Falabella que estreia dia 13 de setembro no Teatro do Centro Cultural Fiesp, com ingressos gratuitos. “Esse momento tão singular simboliza minha admiração pelo Bispo do Rosário”, justifica o ator e diretor.

Encontrar o ponto em comum entre o musical que estreou na Broadway em 1965 e o trabalho do artista que passou 50 anos enclausurado em um manicômio no Rio de Janeiro foi o maior desafio enfrentado por Falabella. “Quando fui convidado a dirigir a nova montagem brasileira, não me animei, pois não estava disposto a tratar da Inquisição espanhola do século 15, período em que se passa o musical”, conta. “Também assisti às duas montagens na Broadway há alguns anos, que não me incentivaram.”

No íntimo, porém, Falabella não estava totalmente convencido e, como continuava impactado sobre a exposição da obra de Artur Bispo do Rosário que acompanhara na Bienal de Veneza, o clique surgiu num instante: “Eu queria que meu Quixote fosse brasileiro, assim a tênue fronteira entre a loucura e o sonho impossível encontra a inspiração ideal na história e na arte de Arthur Bispo do Rosário”, explica.

Assim, a caprichada versão de O Homem de La Mancha, produzida pelo Atelier de Cultura em parceria com o Sesi, Senai e Fiesp (o investimento total soma R$ 11 milhões, sem uso de leis de incentivo), traz a essência do original escrito por Dale Wasserman e com músicas de Mitch Leigh e Joe Darion, mas com um toque tipicamente brasileiro: em vez da Inquisição espanhola, a história se passa em um manicômio brasileiro, no final dos anos 1930. Para lá, é enviado um paciente que se apresenta como Miguel de Cervantes, poeta, ator de teatro e coletor de impostos.

Acompanhado por seu criado Sancho Pança, ele logo é abordado por uma figura intitulada Governador, por ser o comandante dos internos do hospital. “Ele, na verdade, representa o Bispo do Rosário que, durante sua clausura no manicômio Juliano Moreira, tinha a posse das chaves da colônia, ou seja, gozava de uma posição especial em relação aos outros doentes”, conta Falabella, que orientou sua equipe de criação a se basear na obra do Bispo, uma das mais instigantes e interessantes da arte contemporânea, para delinear o espírito do espetáculo. Também o hall do Teatro do Sesi receberá uma exposição para o público descobrir a genialidade do Bispo.

Ambientar O Homem de La Mancha à realidade brasileira – especialmente com o trabalho do Bispo do Rosário – reflete uma tendência dos últimos trabalhos dirigidos por Miguel Falabella. Foi assim na montagem anterior no Teatro do Sesi, A Madrinha Embriagada, cuja ação foi transposta por ele para a São Paulo dos anos 1920. “Pretendo trazer a essência do original, mas sob um ponto de vista nacional, o que torna a peça mais saborosa”, acredita.

Falabella guarda nítida na memória a primeira versão brasileira do Homem, que assistiu na juventude. Traduzido por Paulo Pontes e Flávio Rangel (que também foi o diretor) e com canções adaptadas por Chico Buarque e Ruy Guerra, o musical estreou em 1972 no Teatro Municipal de Santo André, com Paulo Autran (Quixote), Bibi Ferreira (Dulcineia) e Dante Rui (Sancho) nos papéis principais – a montagem carioca, vista por Falabella em 1973, trouxe Grande Otelo no papel de Sancho. Algumas canções do espetáculo logo se tornaram clássicos, como a versão cantada por Maria Bethânia de Sonho Impossível.

“Foi um trabalho fascinante, mas Bibi era quem mais cantava, pois Paulo e Grande Otelo praticamente recitavam a letra das canções”, lembra o diretor que, ao fazer a nova versão, decidiu também traduzir as músicas. “Claro que não é nenhum desprezo pelo trabalho do Chico e Ruy Guerra, mas havia a necessidade de as letras se entrosarem com os diálogos.”

Encenado pela primeira vez na Broadway em 1965, O Homem de La Mancha logo se tornou um clássi,co popular, por unir a sofisticação de suas composições musicais com uma trama profundamente lírica, teatral. “A exigência vocal é enorme, especialmente nas canções de Dulcineia”, observa Falabella que, como no original, não explora a fé inocente de Quixote como farsa – trata-se da figura do sonhador que ousa enxergar as pessoas com melhor alma do que elas realmente têm.

A trilha de Mitch Leigh e Joe Darion era operística, com forte teor espanhol, mas, na essência, puramente teatro musical em sua caracterização e senso de narrativa. E, enquanto na Broadway o espetáculo foi marcado por uma orquestra sem instrumentos de cordas (com a exceção de um contrabaixo), a versão nacional conta com dois violonistas especializados em melodia espanhola. “Mitch soube inserir com maestria o flamenco dentro da estética do teatro cantado”, comenta o diretor musical Carlos Bauzys. “A mim, coube apenas buscar a sua execução da maneira mais fiel e apaixonada possível, acrescentando alguns arranjos extras que me pareceram pertinentes na concepção do Falabella.”

Também sofisticado é o cenário, criado pelos cenógrafos Matt Kinley (britânico) e David Harris (americano). Trata-se de uma opressiva estrutura metálica semicircular, com oito metros de altura. Quatro escadas em curva, interligadas por uma passarela, separam o espaço dos loucos do da chefia. Esse contorno cria o cenário do manicômio, remetendo a um lugar abaixo do solo. E a estrutura é recoberta por um tule importado e pintado a mão pelo artista cênico Vincent Guilmoto, que usou a caligrafia original do Bispo do Rosário.

Mas é no figurino que a influência do artista brasileiro revela-se marcante. Falabella convidou Cláudio Tovar, ex-integrante da formação original do grupo Dzi Croquetes, para desenhar os modelos. O resultado é deslumbrante – Tovar utilizou o mesmo material escolhido por Bispo, como canecas, botões, colheres, agulhas, panos, para criar as roupas. “É delirante. Tovar soube como brincar com a loucura genial do Bispo e desenhar joias feitas com latas amassadas, coroas com prendedores de roupa, trapos que se transformam em luxuosos figurinos, comprovando que tudo é válido no mundo de Arthur Bispo do Rosário”, comenta Falabella.

Ao formar o elenco, o diretor sabia da necessidade de intérpretes com qualidades específicas. Para o papel de D. Quixote/Miguel de Cervantes, por exemplo, a missão ficou com Cleto Baccic. A experiência em espetáculos como Cats, Mamma Mia! e, recentemente, A Madrinha Embriagada, tornou-o talhado para o papel, tanto pelo perfil esguio como pelo adequado tom de voz para assumir a figura do excêntrico cavaleiro errante.

“Há uma honestidade cativante em sua interpretação”, observa Falabella que, para os papéis de Sancho Pança e do Governador, escalou dois veteranos: Jorge Maia e Guilherme Sant’Anna, respectivamente. “Jorge trouxe um humor que remonta ao teatro de revista, enquanto Guilherme participou da minha estreia nos palcos.”

Dulcineia que, na verdade, é uma amarga prostituta de nome Aldonza, recebe uma precisa interpretação de Sara Sarres. “Suas canções solo estão entre as mais exigentes do espetáculo, uma dificuldade que não parece existir para Sara”, elogia Falabella, que se cercou ainda de grandes expoentes do musical brasileiro como Kiara Sasso (que vive Antonia), Ivan Parente (Padre) e Fred Silveira (substituto para viver D. Quixote).

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