Mestre Orlando Da Silva

A gravura brasileira é tão diversificada, do popular cordel a experimentos neo-concretistas, que somente este fato – mais a discrição do artista – explicam a ausência de Orlando Da Silva na antologia Gravura – Arte Brasileira do Século XX (270 pags), editada pela Cosac & Naify em 2000. É um livro esgotado com reproduções acompanhadas de textos de especialistas e gravadores. Da Silva não aparece com seu trabalho, mas comparece enquanto teórico, comentando a importância do trabalho de Poty. Critérios são critérios e quase todos justificáveis e discutíveis.

Mas o pequeno texto de 1980 sobre Poty incluído no livro dá uma amostra de que Da Silva conhece o ofício de um de seus dois ângulos possíveis: o externo, como crítico que distingue a importância do desenho, os meandros das várias técnicas e a influência de outros estilos, como o mural e o desenho, no caso de Poty. Outro ângulo possível, o interno, como artífice, pode ser encontrado em outro livro, Orlando Da Silva (Noris, 160 pags, Curitiba, 2008). Nele, além de longa trajetória, como gravador e trabalhos de 1953 a 2007, portanto um período superior a 50 anos, encontramos preciso depoimento de Fernando Bini.

O lado crítico de Da Silva é ressaltado: ‘Português de nascimento é um dos maiores pesquisadores da gravura brasileira; estudou e publicou livros que são documentos fundamentais sobre a própria gravura além de construir um primeiro olhar crítico sobre a obra gravada de artistas como Carlos Oswald, Guido Viaro, Poty Lazzarotto e Marcelo Grassmann’. Não precisa mais para revelar que Da Silva sabe sobre gravura o suficiente para ser respeitado. Sobre o artista, diz Bini: ‘Ainda hoje não mereceu um profundo estudo crítico sobre sua extensa obra’. O que evidencia que ela é de qualidade, mas carece de olhos atentos para lhe dar o merecido destaque.

Bini diz mais: ‘Nossa vontade é a de reduzirmos a injustiça para com este artista, para que críticos especialistas em gravura e na gravura brasileira se debrucem sobre esta extensa obra; que se faça por ele, o que ele tem feito por tantos outros importantes artistas’. Ou seja, que deem a César o que é de César. E ponto final. Bingo. As palavras de Bini resumem o dilema que envolve o trabalho de gravador de Orlando Da Silva.

Como crítico se sabe que ele se dedicou a reconhecer o talento alheio, e como artista não encontrou quem fizesse por ele o que ele fez pelos outros. Coisas da vida, curiosamente tão comum na vida de grandes artistas.

Se a relevância de Da Silva na gravura pode ser facilmente aferida por atuação de mestre, a de artista carece de mergulho na obra. Como educador na área da gravura, ensinou artistas hoje reconhecidos como Isa Aderne, Roberto De Lamonica, Uiara Bartira e Fernando Calderari, para ficar em poucos exemplos. Isa Aderne diz: ‘Como pedagogo, ele se destaca por estimular seus alunos a serem livres com suas próprias decisões criativas interferindo apenas quanto a excelência técnica’. Sobre o artista, o livro que reúne sua obra pode como disse Bini, fazer um pouco por ele o que não fizeram os críticos.

Da Silva tornou-se artista nos começo dos anos 50 por acaso, ao substituir Henrique Oswald (também gravador e filho de Carlos Oswald, pioneiro da gravura no Brasil e mestre de Da Silva), no Liceu de Artes e Ofícios no Rio de Janeiro. Aceitou a incumbência para o curso de gravura não acabar. No final dos anos 70, quando o movimento de gravuristas no Paraná pegou súbito impulso, com a criação do Ateliê de Gravura no Centro de Criatividade de Curitiba, no Parque São Lourenço, Da Silva deslocou-se do Rio de Janeiro para Curitiba. A linha evolutiva da gravura no Paraná surgida no início dos anos 50 com Guido Viaro, desenvolvida por Poty Lazzarotto em seu retorno da França nos anos 60, passa a ter um novo e criativo capítulo, do qual Da Silva é personagem relevante. Somente isto já seria suficiente para evidenciar a importância do artista. Se precisasse mais poderia se acrescentar que suas obras integram coleções de instituições prestigiadas como o Museu Hermitage de São Petersburgo, Biblioteca do Congresso de Washington, Museu de Arte Moderna de São Paulo e Museu ,da Gravura de Curitiba, entre outras. E se ainda não for suficiente, basta conferir vida e obra.

O garoto Orlando Joaquim Correia da Silva, nascido no Porto em 1923, veio ao Brasil aos nove anos para produzir uma obra vibrante na gravura, e também na aquarela. A Série da Cruz de 1954, juntamente com a série de maneira negra dos anos 50, são os dois primeiros trabalhos de fôlego do artista. Também neste ano aparece pela primeira vez uma gravura denominada ‘peixe com a boca para cima’, cujo tema será recorrente ao longo de sua carreira, com maior frequência, nos anos 70, como na calcogravura ‘peixe’ de 1972 e nas gravuras ‘peixe que engole a ilusão da infância’ e ‘baleia azul’, além da papelogravura‘cobra com nó’, todas de 1973. Estes temas permeiam suas gravuras ao longo de 50 anos.

Nos anos 60, a superfície se fragmenta como solo ressecado quebrando o contraste entre figura e ambiente. É o caso das calcogravuras ‘cerco’, ‘sombra noturna’ e ‘iluminado’, todas de 1961. Mais adiante ele faz uso magistral do papel como matriz, produzindo estampas que estabelecem contraste entre animais e natureza. O que era marca das gravuras com os animais marinhos, nos anos 70 inclui animais terrestres como no caso das papelogravuras ‘rinoceronte’ de 1972 e ‘arvores com boi’ de 1973. Ou, ainda, nas calcogravuras dos anos 80 – mais especificamente entre 1985 e 1987 – abordando pássaros em luta com gaiolas, com ondas violentas, num belo contraste de tonalidades claro e escuro. O interessante é que ao
longo das décadas, embora surjam cores e o preto e branco seja retomado, a tensão se mantém inalterada, com humanos, peixes ou pássaros. Uma tensão que contrasta com a discrição plácida do artista. Estamos diante de uma bela obra consistente. Esta a razão da estranheza de sua ausência no panorama da Cosac & Naify. Ainda mais que o livro reúne um conjunto de 85 gravadores. Claro que a ausência é justificada levando-se em conta o propósito de apresentar um painel diversificado da gravura brasileira no tempo e no espaço, dos primórdios a atualidade, da modernista Anita Malfatti ao conceitual contemporâneo Nelson Leirner, contemplando os pioneiros Carlos Oswald, Lasar Segall e Oswaldo Goeldi, sem deixar Grassmann o Abramo de lado, passando por personagens diversos quanto Amilcar de Castro, Gilvan Samico a Fayga Ostrower, Maria Bonomi e Francisco José Maringelli. Em nome da diversidade, alguns virtuoses foram sacrificados. Este tipo de empreita produz reconhecimentos inesperados e comete injustiças justificáveis.

Para se ter ideia, uma das maiores coleções particulares de gravura brasileira, a de Mônica e George Kronis, que percorreu algumas capitais brasileiras em 2007, entre elas Curitiba, exclui vários nomes do panorama da Cosac & Naify e inclui outros respeitáveis, entre eles Orlando da Silva, Fernando Calderari, Uiara Bartira e Guido Viaro, ausentes da anterior. E levando em conta que o número de artistas na segunda é de 202. Como se disse, critérios são critérios, e todos são justificáveis, e também sujeitos a contestações. A vida segue. O que não se pode é ignorar a excelência e qualidade da gravura do discreto mestre Orlando Da Silva, que além de produzir obra original, ensinou artistas expressivos a ir em frente. Ou vice-versa.