‘Maysa’ apresentou uma personagem histórica da MPB

O sucesso retumbante de Maysa – Quando fala o coração, minissérie apresentada pela TV Globo até a última sexta-feira, apresentou para o público mais jovem uma personagem especial da história da música popular brasileira. Maysa Figueira Monjardim (ex-Matarazzo), que morreu em 1977, aos 40 anos, era uma espécie (a associação vem sendo feita por críticos para facilitar a explicação) de Amy Winehouse de seu tempo.

Teve sua carreira e sua vida abreviadas por conta de uma espiral fatal de cigarros, bebida e boemia, tudo além da conta. Sem contar os relacionamentos fracassados com André Matarazzo, pai de seu filho Jayme Monjardim (que dirigiu a minissérie sobre a própria mãe), e com o jornalista e compositor Ronaldo Bôscoli.

Por ser um produto para televisão, Maysa – Quando fala o coração apresenta mais a mulher Maysa. Era esta, inclusive, a intenção de Jayme Monjardim e do autor do texto, Manoel Carlos. Eles queriam apresentar ao público as histórias de uma mulher distante de suas iguais, que rebelou-se com o destino traçado por sua vida. Seus pais viam nela a filha perfeita, a aluna do internato Sacré-Coeur, a esposa e mãe extremada. Ela subverteu a ordem no colégio, casou-se cedo com um homem vinte anos mais velho e largou-o (o filho também) para seguir uma carreira musical.

Neste aspecto, a trajetória de Maysa é realmente impressionante. Ao contrário das outras cantoras da década de 1950, como Dolores Duran e Sylvia Telles, ela tinha conquistado tudo que a vida poderia oferecer, mas mesmo assim ela abdicou e foi ser cantora, profissão abominada por sua sogra. Nunca aceitou a então costumeira função submissa da mulher, controlou todos os passos de sua carreira. E teve uma atitude “masculina”, bebendo, fumando e ficando com os homens que quis.

Só que desta história de folhetim precisa aparecer a cantora e compositora que revolucionou a música brasileira. A já citada Dolores Duran também cantava e compunha. Sylvia Telles era uma bela mulher. Elizeth Cardoso já era a “Divina”. E, antes, houve Nora Ney, Lana Bittencourt, Linda Batista, Aracy Côrtes, Emilinha, Marlene, Carmem Miranda, Chiquinha Gonzaga.

Mas foi Maysa que alcançou o sucesso triunfal com seus álbuns, sempre com canções de fossa de própria autoria, como Resposta, Adeus, Ouça e Meu mundo caiu. Até músicas que não eram dela, como Franqueza (“Você passa por mim e não olha / como coisa que eu fosse ninguém…”), de Denis Brean, tinham seu jeito e pareciam ter sido feitas só para aquele mulherão de rasos 20 anos, corpo escultural e os famosos olhos verdes, os “dois oceanos não-pacíficos” de Manoel Bandeira.

Para ter uma idéia do estilo trágico da cantora, retiro um trecho do Dicionário Houaiss de Música Brasileira: “Seus grandes sucessos foram Felicidade infeliz, de sua autoria, Solidão, de Antônio Bruno, Bom dia, tristeza, de Adoniran Barbosa e Vinícius de Moraes, Tristeza, de Haroldo Lobo e Niltinho, Ne Me Quite Pas, de Jacques Brel e Bloco da solidão, de Jair Amorim e Evaldo Gouveia”.

E sem contar, é claro, a quase biográfica Demais, feita para ela por Aloysio de Oliveira e Tom Jobim. Se a melodia dolente e meio atravessada já tinha tudo a ver, a letra era a cara dela: “Todos acham que eu falo demais / E que eu ando bebendo demais / Que essa vida agitada / Não serve pra nada / Andar por aí / Bar em bar, bar em bar…”. E tinha mais: “Dizem até que ando rindo demais / E que eu conto anedotas demais / Que eu não largo o cigarro / E dirijo o meu carro / Correndo,
chegando, no mesmo lugar…”.

Maysa vivia, cantava e vivia ainda mais aquele mundo de boemia, fossa e bebida. Ela corria muito, mas não saía do lugar. Exagerava no álcool, mais do que foi apresentado na minissérie. Mesmo assim, era a cantora mais popular (e mais bem paga) do País em 1960, quando engatou um namoro com Ronaldo Bôscoli e lançou Barquinho, seu álbum de Bossa Nova. E mesmo os mais renhidos defensores, do movimento reconhecem que a popularidade nacional do movimento só veio quando Maysa cantou “Dia de luz, festa de sol / e o barquinho a deslizar / no macio azul do mar…”.

Mas ela, apesar de tudo, não segurou a onda. Ainda nos anos 60s ela se afastou das grandes gravadoras e dos sucessos. Perdeu o bonde da história (até disputou festivais, mas não foi “incluída” na recém-nascida MPB), foi morar na Espanha e passou bom tempo cantando apenas em francês e inglês. Voltou, namorou artistas e tentou um retorno com o emblemático álbum Ando só numa multidão de amores, de 1970.

Ainda gravou outro disco, mas já não tinha a mesma força de outrora. Apesar de parar de beber, os anos de excessos cobraram muito caro, e a beleza (física e da voz) definhou. Ao morrer, em 1977, deixou uma marca única na história da música no Brasil, e a sensação de que poderia ser muito mais, que poderia ter sido a maior cantora que o País já teve. Deixou uma sucessora, no talento e na boemia (e no casamento com Bôscoli): Elis Regina, a maior cantora de todas, mas que também exagerou na roda-viva dos excessos e partiu cedo demais.

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