Marishka, conto de Dalton Trevisan

Conto do escritor Dalton Trevisan extraído do livro Desgracida.

O mundo é só Marishka. O resto? Supérfluo e trivial, nadinha de nada. Marishka habita no verde dos meus olhos. Sem preocupação de verossimilhança psicológica, coerência política ou prospecto financeiro. Sua eternidade é agora.

O mais belo espécime da face da terra. Hoje Marishka o que foram, a seu tempo, a voz rouca de Greta Garbo e os olhos putais de Ava Gardner. Sim, o esplendor das coxas de Cyd Charisse. Sozinha Marishka é a nova mitologia.

Das pedras que pisa Marishka nascem violetas e pavões. À sua passagem, vejam, ó incrédulos!, o despropósito de mil arco-íris no céu, inundações avassaladoras em todos os rios e lagos, cantiquinho de pintassilgo no peito dos monges santos do Tibet. Cegos para sempre pela sua nudez única.

Ei-la na marcha indócil de égua do Faraó Ramsés II, carro de fogo, nuvem calipígia de olhos dourados e saltinho agulha, sarça ardente abrasando as árvores do deserto.

Os versos de Sinhô (daí então dar-te eu irei / o beijo puro da catedral do amor) já celebram Marishka atemporal. Assim a alegria do teu canto desafinado no banheiro. E o deslumbre do menino míope com o primeiro óculo.

Bendito uísque ou droga que leva Marishka a se livrar do paletozinho e da saia, já sem sutiã e calcinha. Ri, careteia, grita, chora, geme, suspira, soluça, desfalece de paixão. Se é mentirosa compulsiva, pérfida e bandida, o que interessa?

O que vale é Marishka existir, foi tua por uma noite e para sempre, uma aventura edificante a ser contada aos netos. A lembrança da delicadíssima felação, oh, céus!, jardim de delícias que te faz aceitar jubiloso a morte por fuzilamento com direito a tiro de misericórdia na nuca.

A saudade furiosa do corpo de Marishka é a dor, o mesmo urro de dor que você deseja e pragueja, sim, ao teu pior inimigo.

Todas as mulheres, antes e depois de Marishka, se perdem na noite escura do esquecimento. Só me lembro do teu conjunto branco justo, o vestidinho amarelo, aquele outro azul. Ah, Marishka, esse velho roupão escarlate só valoriza as tuas imaculadas brancuras.

Imprevisível, ora a menina ingênua e santa, ora a velha puta de todos os vícios, o rosto já denuncia o álcool e a droga. E a voz rouca, sempre um tom mais baixo, você apura o ouvido para entender. Faz silencio por dentro a fim de escutá-la.

Minha orquídea branca e luxuriosa, na rendilhada lingerie preta, sem esquecer a liga roxa – essa alucinante nesga de coxa alvíssima lavada em sete águas.

Viva Marishka, acendendo um cigarro no outro, dançando nua na boate de lésbicas, sozinha na sua loucura – e a redenção do mundo pela graça de tamanha beleza imortal.

Marishka transcende o tempo. É um diálogo de Platão, broinha de fubá mimoso, um poema de Rilke, o coração da alcachofra, girassol de Van Gogh, o cantiquinho da corruíra, um conto de Tchecov, o som de uma só mão que bate palmas.

Ó fogosa Marishka! Ó querida e perdida Marishka! Ouça, por favor, onde estiver.

Atenda, ingrata, escute, desgracida, o meu pobre gazeio de amor.