Evocação breve (e comovida) de Bento Munhoz da Rocha Netto

Acaba de transcorrer uma efeméride das mais significativas: há precisamente cem anos, no dia 17 de dezembro de 1905, nascia em Paranaguá alguém que pode e deve ser considerado, não apenas um dos maiores brasileiros, mas também o maior paranaense de todos os tempos: Bento Munhoz da Rocha Netto.

Escrevo esse nome ilustre, em cujas sílabas pulsa algo de aristocrático, com emoção incontida e irreprimível saudade. Não posso esquecer que, tendo acompanhado, ainda adolescente, as culminâncias da sua vida pública, tive a honra e o privilégio de, nos dois anos finais da sua vida, conviver de perto com ele, na intimidade do seu lar, em conversas que me marcaram para sempre não apenas a sensibilidade, mas o intelecto. Foram por certo conversas inesquecíveis em que ele me prodigalizou os tesouros da sua cultura e da sua inteligência, em considerações que sempre revelavam a inteireza do seu caráter, a grandeza da sua força moral e, sobretudo, aquele ?milk of human kindness?, o leite da bondade humana de que falou Shakespeare.

Mestre Bento foi, indubitavelmente, uma daquelas figuras raras cuja sombra se projeta numa época. Foi um dos personagens mais significativos da história do Brasil moderno. Intelectual, professor, escritor, sociólogo, historiador, político, deputado federal, governador do Paraná, ministro de Estado, durante mais de três décadas o brilho fulgurante do seu pensamento e da sua ação iluminou as avenidas da quotidianidade paranaense e brasileira. Em todos os momentos, ele foi um artífice da história. Não se contentou em ser mero figurante ? foi um dos atores principais no cenário da vida política e mental do Paraná e do Brasil. Destarte, acabou por tornar-se lúcido arquétipo e insuperável paradigma da gente paranaense, que teve nele o emblema exponencial. Modelo e exemplo do que de melhor existe na paranaensidade, que tem no pinheiro o símbolo hierático da verticalidade.

Cidadão exemplar que soube sempre cultivar uma espécie de heroísmo sem alardes, o mestre tinha no coração a surda, inabalável convicção de que o cumprimento do dever e o culto da verdade e da honra valem todos os esforços e compensam todos os riscos existenciais. Pertencia àquela estirpe soberba dos homens que sabem muito bem o que querem e para onde vão, e que, para a conquista dos seus ideais, para a concretização das suas metas, para a consubstanciação dos seus sonhos, se entregam inteiramente à luta, sem desfalecimentos, com entusiasmo, com devotamento, com dedicação. Acima de tudo, com amor. Sem o qual não há nem pode haver jamais criação para o futuro, dentro dos parâmetros da catolicidade, vale dizer, do universalismo.

Em sua personalidade de escol coexistiram harmonicamente, de um lado a fidelidade às nossas tradições mais caras, às nossas raízes mais fundas, de outro lado o impulso incontido para a renovação, base das transformações sociais e, por conseguinte, sustentáculo da dignificação do próprio indivíduo.

Homem-continente, homem-oceano, na medida em que foi a síntese de qualidades e virtudes essenciais, o grande paranaense, pela intrínseca verticalidade da sua postura existencial, pela dimensão humanista, intelectual, ética e moral, foi um daqueles raros seres humanos cuja simples existência dignifica um Estado e enriquece uma Nação.

Homem público exemplar, que sempre serviu sem jamais servir-se, estadista brilhante que só aquelas circunstâncias a que se referiu Ortega y Gasset impediram de ter sido Presidente da República, Bento Munhoz da Rocha Netto talvez merecesse a lira de Homero ou a tuba de Camões, para exaltá-lo, em toda a plenitude.

Penso que na organização mental de Bento, na sua arquitetura portentosa se destacaram, à maneira de colunatas gregas esculpidas por um Fídias, três valores fundamentais, quase sacrossantos: a cultura, o humanismo e a ética. Esse trinômio se faz presente em livros fundamentais que nos legou, como Radiografia de novembro, Uma interpretação das Américas, Ensaios, Presença do Brasil, Tingüis e outros, que enriquecem a estante paranaense e brasileira, e onde a elegância do estilo literário reproduz por assim dizer o estilo existencial de mestre Bento, antes de tudo um ?scholar?de alto coturno.

Sim, dele se poderia dizer tudo o que foi dito dos varões de Plutarco e dos heróis de Carlyle. Mas eu quero dizer apenas, singelamente, repetindo Carlos Drummond de Andrade e Alceu Amoroso Lima: honro-me de ter sido seu contemporâneo. Ou melhor, continuo honrando-me de ser seu contemporâneo. Pois a verdade é que homens como Bento não morrem nunca. Homens como ele não sabem submeter-se ao império autocrático de Tanatos. Ele continua entre nós. Está presente nas entranhas dos seus livros magistrais, nos ensaios admiráveis, nos discursos modelares, da linhagem de Vieira e Rui. Está presente sobretudo nos seus incontáveis exemplos de grandeza humana, de honra, de dignidade, de caráter, de lucidez, de força moral, de inteligência, de bondade, de justiça, de equanimidade. Foi essa, de fato, a sua perpétua estratégia de vida.

Uma coisa é certa: Bento continua vivo em nossos corações. Oferecendo exemplos. Apontando caminhos. Ensinando lições. Afirmando, proclamando a coexistência admirável da matéria e do espírito. Da matéria que constrói, que edifica, mas passa. E do espírito que, transfigurando todas as coisas que saem da mente, do coração e das mãos do homem, lhes confere também um sentido mais puro e mais autêntico, irresistivelmente vocacionado para o infinito e o eterno.

 Em suma: nascido há precisamente um século, Bento vive ainda em tudo aquilo que pensou, escreveu, disse e, sobretudo, fez. Sempre sob o signo da grandeza. Mas daquele tipo de grandeza, temperada pela humildade, que é apanágio dos bons, dos simples, dos puros, dos que, como o Antero do velho Eça, chegam a tangenciar a própria santidade. 

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