Espectador tem participação ativa em ‘A Floresta Que Anda’

Christiane Jatahy é uma artista inquieta – seu trabalho no teatro busca, cada vez mais, derrubar fronteiras estéticas, trazendo o cinema e as artes plásticas para o palco de forma que o espectador seja estimulado por um produto híbrido e extremamente criativo. Foi assim na peça Corte Seco (2009), em que o público viajava para fora do teatro graças às imagens projetadas por câmeras de segurança e também no filme A Falta Que Nos Move (2005/2010), em que transgride o tempo ao mostrar uma ação contínua, como se fosse uma longa peça teatral. A encenadora atinge agora o ápice da alquimia cênica com A Floresta Que Anda, que estreia na quinta-feira, 14, no Galpão do Sesc Pompeia.

É difícil encontrar uma definição para o trabalho, pois chamá-lo de peça seria limitar sua força; também não é um espetáculo porque o público não estará ali como mero receptor de ideias. Talvez o mais próximo da realidade seja apontá-lo como uma experiência sensorial. Afinal, desta vez, Christiane transformou o espaço cênico em uma galeria de arte que exibe uma videoinstalação: ao entrar, o espectador vai encontrar quatro telas que vão exibir depoimentos de jovens cuja vida foi decisivamente marcada pelo sistema político e econômico, tanto do Brasil como de outros países.

Em todos os dias, o local receberá um vernissage (com direito a serviço de bar) e os espectadores vão assistir aos vídeos que vão prepará-los para uma performance que mistura realidade e ficção. “É o meu trabalho mais arriscado. E o que mais mudou porque está intimamente ligado com o espectador, ou seja, não está totalmente em minhas mãos”, comenta Christiane.

Não se trata de uma figura de retórica. A Floresta Que Anda fecha uma trilogia de apropriação de clássicos iniciada com Julia (2011), inspirada em August Strindberg, seguida depois por E Se Elas Fossem Para Moscou? (2014), que partiu de Chekhov, até chegar ao trabalho atual que tem Macbeth, de Shakespeare, como base. “Mas, em cada uma, há uma diferente forma de aproximação com o original”, observa a diretora. “Enquanto Julia é mais próxima do texto de Strindberg, Moscou revela-se mais híbrido em termos de dramaturgia – mas Floresta é apenas inspirado em Macbeth.”

Isso se reflete diretamente na relação do público com o espetáculo. Assim, em Julia, cujo foco estava na relação entre patrão e empregado, o espectador acompanhava tudo, ou seja, com teatro e cinema se desenvolvendo simultaneamente, enquanto em Moscou, que tratava da imobilidade a partir de aspectos íntimos, os momentos encenados e os filmados se complementavam em espaços separados.

Finalmente, em Floresta, que mergulha intimamente na relação de poder nos sistemas políticos e sociais, a relação entre os gêneros chega a um ponto em que se desfazem as fronteiras entre os formatos. “O protagonismo agora é o real, são as pessoas que assistem ao espetáculo. Não existe o protagonismo do ator”, explica Christiane.

Não se trata, porém, de um trabalho sem a presença de nenhum artista em cena – Julia Bernat estará presente, trabalhando ao lado do público a criação da performance de cada dia. Mas a presença realmente importante é a do público. Ao chegar, os espectadores terão tempo para assistir aos quatro vídeos, com depoimentos contundentes. São pessoas que não mostram diretamente o rosto – é possível delineá-las por meio de reflexos em espelhos, xícaras. “Vemos partes delas e a sua voz. Isso facilita a aproximação com a sua história. São pessoas que vivem os efeitos do atravessamento do sistema político e econômico em suas vidas”, comenta Christiane, que se decidiu por jovens porque seu destino é o futuro do Brasil, do mundo. “A proteção não tem intenção de esconder, mas de ajudar a ressaltar o pensamento de cada um.”

A primeira história é a de um rapaz do Rio de Janeiro, preso sob a acusação de participar da organização das manifestações populares de 2013. O simples fato de contestar o regime obrigou-o a passar 7 meses em Bangu 1. O segundo vídeo apresenta um refugiado do Congo que vive em São Paulo – ele foi preso e torturado em seu país por improbidades cometidas por seu padrasto. A terceira história é a de uma moradora da Rocinha, sobrinha de Amarildo, homem cujo misterioso desaparecimento continua sem solução. Finalmente, o quarto vídeo traz a história mais delicada, a de um refugiado sírio, cuja identidade precisa continuar no anonimato sob risco de sua família, que ainda vive na Síria, sofrer represálias.

“As entrevistas ajudam a mostrar como a política nos atinge em diversos níveis. São situações que acontecem de maneira muito próxima, mas que não damos conta”, observa a diretora, que começou a projetar a montagem depois da bem sucedida experiência chamada Utopia.doc, na qual filmou conversas com imigrantes de todas as partes do planeta.

A experiência de participação do público continua quando alguns dos presentes serão convidados a receber uma escuta pela qual Christiane vai transmitir mensagens com indicações sobre como montar a cena e orientar os outros espectadores. A intenção, segundo ela, é criar uma suspeita de que algo está sendo tramado – sensação que aproxima o projeto de sua origem, Macbeth, de Shakespeare, tragédia que traz um cenário de guerra permeado por pensamentos relacionados à origem do mal e da ambição que pode levar o homem a matar.

Christiane Jatahy lembra que o texto shakespeariano não passa de um ponto de partida. “Macbeth estará invisível, mas presente em toda a estrutura da apresentação”, conta. “Lanço a pergunta sobre quem seria, ou o que seria, esse Macbeth hoje. Não para encontrar alguém que o simbolize, mas para refletir sobre como a relação gananciosa dos sistemas de poder estão em torno de nós e nos atravessam direta ou indiretamente.”

A encenação do que a diretora define como “videoinstalação com performance” reserva ainda uma surpresa para o público que, no fim, vai descobrir como sua participação não foi passiva. Fascinante viagem artística, A Floresta Que Anda comprova a vitalidade da inquietude de Christiane Jatahy em sua incessante busca do melhor entendimento da alma humana.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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