Dercy Gonçalves dá aula de irreverência na sua festa de aniversário

São Paulo

– Eu nunca tinha visto tanto jornalista para tirar retrato de uma velha de 90 e tantos anos. A frase foi desferida pela comediante Dercy Gonçalves, e fez desmoronar em gargalhadas o salão do hotel no qual ela comemorava 96 anos, terça à noite, na Vila Olímpia, zona sul da capital paulista. A boquirrota Dercy quase mata de rir os convivas da festa, deixando os puxa-sacos com sorriso amarelo e os amigos de cara vermelha. “Você vai ser a primeira de nós a chegar aos 100 anos!”, proclamou no meio do salão a dramaturga Leilah Assunção, amiga do peito da comediante. Ao que Dercy respondeu, lá no fundo: “Eu vou na frente, meu bem. Te espero lá!”

Dercy Gonçalves, nascida em Santa Maria Madalena (RJ) em 23 de junho de 1907, filha inquieta de Manoel e Margarida, mantém notável lucidez e disposição física aos 96 anos. “A esperança é que em breve, ou daqui a pouco, melhore tudo no Brasil”, ela disse, incitando os jovens a tomar o poder. “Vocês é que são o futuro, vocês é que vão mudar tudo!!”

Dercy sobreviveu à fuga de casa, aos 17 anos, aos excessos da vida notívaga, à violência sexual que sofreu no Paraná, aos inimigos e aos amigos e está tinindo. Fez 52 filmes e 55 peças de teatro. Desfilou com os peitos de fora no sambódromo do Rio de Janeiro, enrubesceu o “patrão” Silvio Santos, esculhambou e avacalhou em praça pública. E tornou-se uma das raras highlanders da cena cultural brasileira, integrante por mérito de um seleto clube de notáveis nonagenários, como o arquiteto Oscar Niemeyer.

Palavrão

“Dizem que eu falo muito palavrão. Não é palavrão, é apelido”, ela explicou, com a esganiçada voz, treinada em dezenas de chanchadas. Nova avalanche de risos quando ela começa a descrever os apelidos de cada elemento de seu glossário. Não foi por acaso que uma companhia telefônica a contratou recentemente para brincar num comercial com sua incontinência verbal, colocando “piiiiiiis” em cada um dos seus impropérios.

O palavrão, por sinal, foi tema de uma pequena digressão de Leilah Assunção. Ela ponderou que, nos anos da contracultura, enquanto artistas uspianos e letrados se esforçavam para dar um verniz político ao palavrão, Dercy, autodidata, fazia dele seu instrumento natural de trabalho. “Se não houvesse Dercy, o Teatro Oficina não teria existido. Sem ter a consciência política, ela já estava, muito antes de nós, acabando com as regras, derrubando as coisas que não funcionavam mais.”

Mixórdia

A lista de convidados do convescote de Dercy era uma mixórdia. A ruidosa ex-condessa Carola Scarpa levou a avó, Kina. Do radialista Paulo Barboza à karaokette Mariana Kupfer, do investigador de assuntos da vida alheia Leão Lobo à starlet Adriana Lessa, atriz da Globo. Até gente da nova geração, como a também comediante Gorete Milagres, foi atrás da fórmula de Dercy. E tinha bolo de oito andares (que Dercy usou como chapéu, ao final da festança) e pétalas de rosas vermelhas jogadas sobre as mesas.

Os anfitriões da festa de Dercy, desmesurados em clichês e bajulação, exibem a comediante como um troféu. Escoram-se nos seus ombros, como papagaios de pirata, para aparecer na foto. Não a merecem. Mas não se enganem: ela não é uma vítima. Faz e desfaz, sem cerimônia. O promoter, derramado, a “surpreende” revelando na platéia sua filha, Dercimar Gonçalves. “Gostou do presente, mamãe?”, pergunta o sujeito. “P.Q.P.!!!!”, berra Dercy, osso duro de roer. Piiiii!!!

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