Conversa imaginária com Tristão

Recentemente foi lançado um volume contendo a correspondência de Tristão de Athayde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima (1893-1983), com a filha que retirou-se para a vida religiosa ao ingressar num mosteiro. A propósito disso, revisitei a seleção feita por Gilberto Mendonça Teles, publicada em 1980, com apoio do Instituto Nacional do Livro, do que melhor escreveu Tristão nos campos da teoria, crítica e história literária, desde o primeiro artigo publicado em 1919.

Para eliminar quaisquer resquícios de dúvida sobre a grande dimensão da obra realizada por Alceu Amoroso Lima, Gilberto fez questão de inscrevê-lo entre nomes importantes do pensamento brasileiro como Silvio Romero, José Veríssimo, Ronald de Carvalho, Afrânio Coutinho, Antônio Cândido, José Guilherme Merquior, Alfredo Bosi e Wilson Martins.

Mestre Alceu foi um dos derradeiros pensadores brasileiros a marcar de maneira indelével suas posições políticas e sociais, ele que no fim da vida dedicou-se unicamente à análise dessa temática em memoráveis artigos semanais publicados no Jornal do Brasil. Desde a morte de Barbosa Lima Sobrinho e Raymundo Faoro, últimos abencerrages do pensamento independente, a tradição de intelectuais do porte de Alberto Torres, Euclides da Cunha e do próprio Tristão de Athayde, está tristemente em baixa em nosso País.

A releitura de alguns tópicos da imensa obra de Alceu Amoroso Lima deu-me a idéia de realizar uma entrevista imaginária com o crítico, cuja inteligência caudalosa, inesgotável, assemelha-se à nascente de um portentoso rio. Não tenho a pretensão de achar que as respostas de Alceu às perguntas que formulei seriam as que escolhi ao longo de seus escritos. Meu propósito, e ficarei muito satisfeito se isto acontecer, é (re)aproximar dos leitores este fulgurante intelectual injustamente esquecido. Segue a entrevista imaginária.

P.- O senhor que dedicou quase toda a vida à literatura, a que conclusão chegou?

R.- A literatura é um dos sinais característicos da dignidade e da elevação do homem. Ou é a literatura uma elevação do homem, ou não é literatura.

P.- Em resumo, o senhor afirma, então, que…

R.- A palavra é, pois, o elemento material intrínseco do homem de letras para realizar sua natureza e alcançar seu objetivo artístico. É o modo como o gênio criador trata a palavra para convertê-la numa obra de beleza, logo, de perfeita expressão representativa. A literatura é, pois, uma das artes de expressão e representação cujo instrumento comunicativo é a palavra.

P.- Qual terá sido, então, a grande realização da arte literária, se é que houve alguma?

R.- A literatura é a grande incorporada, à humanidade, desse mundo de ficções vivas que dobram, no plano da vida mental concretizada, o mundo dos seres vivos de carne e osso. O homem trabalha, como artista, no mesmo sentido do seu Criador. Nisso está, sem dúvida, a maior das dignidades da arte. Assim como Deus criou o homem à sua imagem, criam os homens analogicamente personagens, romances, poemas, à imagem e semelhança de si mesmos.

P.- Por que alguns povos têm maior capacidade de fazer literatura?

R.- Toda literatura só pode ser viva e fecunda em ambiente impregnado de tradição literária. Só quando um povo sabe dar valor ao seu patrimônio estético de outrora, mostra-se capaz de enriquecer esse patrimônio com outras contribuições e outros valores. A capacidade de criar beleza nova nunca se dissocia do respeito à beleza antiga.

P.- Até que ponto a formação cultural reforça o poder de criar?

R.- A formação pedagógica nunca tolhe o ímpeto criador, e pode, ao contrário, concorrer para seu estímulo. Saber não se opõe a poder. Embora nem sempre seja poder. O poder literário é dom que a cultura não dá. A cultura, porém, é um enriquecimento que pode aumentar de muito o dom literário. Pois criar não é apenas deixar nascer. O gênio criador precisa de alimentação espiritual, como a vida fisiológica de calorias renovadas. A cultura deve ser, nos espíritos criadores, esse estímulo à criação, pelo enriquecimento do seu mundo de pensamento e de conhecimento.

P.- Pensando assim, qual é a dívida da literatura brasileira com Machado de Assis?

R.- Falar de Machado é remexer toda uma biblioteca, é reviver toda uma literatura. Pois suas raízes vão muito mais longe que o tronco, como sucede nas árvores que desafiam o tempo e as tempestades. Como falar levianamente sobre um homem que marcou uma era nova em nossa história literária, que abriu horizontes até então desconhecidos e que, tendo vivido uma vida de absoluta ausência de participação na grande vida ativa do mundo e das paixões, mesmo de idéias, conseguiu impor a toda uma nação a força de sua timidez, o sinete do seu recato, a marca imperiosa do seu gaguejamento. A obra de Machado de Assis é uma obra límpida, sem dúvida, cristalina de expressão. Seu estilo é pobre, desejadamente pobre. Fugiu sempre à expressão derramada e abundante, e nisto até hoje escandaliza muitos dos seus leitores e críticos. Escreve mais nas entrelinhas que nas linhas. Sugere mais do que diz. Evoca mais do que mostra. E nunca escreve sem segunda intenção. A leitura de seus livros, portanto, é uma charada, cristalina sem dúvida, ao lado do progresso que na arte sibilina tem feito, há vinte anos, a literatura, mas que permite sempre soluções variadas, embora a dele fosse sempre, invariavelmente, a mais desencantada.

P. Como profundo observador da essência do ser, o que o senhor diz da desordem atual?

R.- O homem moderno pretendeu conservar e desenvolver a sua liberdade de consciência, arrancando-a de suas raízes sobrenaturais e separando, de modo absoluto, os interesses temporais, dos interesses espirituais, o que era de César do que era de Deus, o que era do corpo do que era do espírito. E o resultado é o caos atual, essa “desordem em toda a linha” que nos revelam os homens mais impregnados de todo o espírito moderno.

P.- Diante disso, tendo em vista sua profunda formação católica, não há mais

possibilidade para a fé?

R.- Respondo com as palavras do norte-americano Joseph Wood Krutch: “O ceticismo entrou profundamente demais em nossas almas para conseguir ser substituído pela fé, e nós nunca poderemos esquecer tudo aquilo que os novos bárbaros nunca sentirão a necessidade de ter sabido. Este mundo, no qual uma discórdia insolúvel é o fato fundamental, é o mundo no qual nós estamos condenados a viver, e para nós a sabedoria deve consistir, não em procurar uma saída que não existe, mas em fazer as pazes com ele como for possível fazer… Nossa causa é uma causa perdida e não há lugar para nós no universo natural, mas apesar disso não nos entristecemos de ser homens. Pois preferimos morrer como homens a viver como animais”.

P.- Diante dessa perspectiva humana gravemente pessimista, qual é o seu sentimento em relação ao homem brasileiro?

R.- Estamos, nós brasileiros, no caos. Tudo é informe. Tudo é transitório. Aceitamos as correntes mais contrárias. A raça não está caldeada. A saúde do povo corrompida. A riqueza, nas mãos de estrangeiros ou no fundo da terra. A unidade nacional abalada. A sorte do indivíduo abandonada. O poder, arbitrário, periclitante ou acometido de armas nas mãos. A arte, a filosofia, a literatura, imitando o passado ou comprazendo-se na diluição, no sarcasmo cínico, na morte. A terra ignorada. O futuro incerto. Tudo transitório. Tudo por fazer. Tudo vago, indeciso, amorfo.

(Pela transcrição agradeço a Livros Técnicos e Científicos Editora, INL/ MEC e, especialmente, ao organizador Gilberto Mendonça Teles).

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor.

Voltar ao topo