‘Casa Grande & Senzala’ e biografia de Dumont saem em HQ

Gilberto Freyre gostava de dizer que sua obra-prima, ‘Casa-Grande & Senzala’, é a história da formação brasileira escrita através de sugestões plásticas. Para ele, a obra na qual detalhou as contribuições portuguesa, indígena e africana na evolução nacional nasceu com a predisposição para ser quadrinizada. Assim, ele participou com alegria da versão em HQ produzida em 1981. Na mesma época, o ilustrador e cartunista João Spacca de Oliveira, o Spacca, começou sua pesquisa sobre Santos Dumont, recolhendo material de arquivo de jornais e coleções sobre o aviador. O fruto dos dois trabalhos chega agora às livrarias, que recebem cada vez mais cuidadosos trabalhos em HQ: ‘Casa-Grande & Senzala’ (Global) ganha nova edição e ‘Santô e os Pais da Aviação’ (Companhia das Letras) revela a coragem de Spacca em colocar no papel suas idéias.

A adaptação da obra de Freyre foi cuidadosa. Realizado pelo antropólogo e historiador Estêvão Pinto, o texto em quadrinhos mantém-se o mais próximo possível do original. Idêntico cuidado teve o desenhista Ivan Wasth Rodrigues, que se baseou nas pinturas de artistas que retrataram os primeiros séculos de história do Brasil, como Jean-Baptiste Debret, além da técnica de ilustradores italianos como Giorgio Tabet e Fortunino Mantania.

Juntos, eles consumiram diversos meses de pesquisa – enquanto Pinto recebia a consultoria de Freyre sobre quais pontos da obra eram mais destacáveis, Rodrigues fazia ensaios em aquarelas até iniciar o desenho a traço em preto-e-branco, o mais comum dos quadrinhos. A solução também buscava baratear a obra, que teve suas três primeiras edições esgotadas.

A obra só voltou às livrarias em 2000, por ocasião do centenário de nascimento de Gilberto Freyre, e com os quadrinhos colorizados por Noguchi, que levou em consideração as aquarelas iniciais de Rodrigues, especialmente a pesquisa de cores das roupas e paisagens entre os séculos 16 e 18.

O livro seria o primeiro de uma coleção de clássicos brasileiros de ciências sociais em quadrinhos, projeto apoiado pela Editora Brasil América, a saudosa Ebal. Mas a morte do editor Adolfo Aizen e diversas crises econômicas engavetaram o projeto logo depois de seu primeiro volume.

Já ‘Santô’ chega aos quadrinhos depois das tentativas de Spacca de contar a vida do pai da aviação tanto em filme de animação como em CD-ROM. Ele retrata o jovem rico, filho de fazendeiros de café, que tinha um enorme interesse pelo funcionamento de máquinas e sonhava voar. Tudo começa quando a família viaja para a França. O pai de Alberto não estava muito bem de saúde, precisava se recuperar, e nada melhor que os ares parisienses para isso.

Lá, o pai resolve vender sua propriedade no Brasil e dá mil contos de réis ao filho, a parte que lhe cabia na venda. Liberdade para "ver se ele se fazia homem". E ainda aconselhou: "Prefiro que não se torne ?doutor?. Fique longe do direito e da política. Siga o exemplo dos seus cunhados, os irmãos Villares, todos engenheiros." O filho seguiu os conselhos do pai, que não pôde ver Alberto voar.

O dinheiro financiou os sonhos e extravagâncias de Alberto. Primeiro foram os balões. Depois de algumas experiências e uns tantos tombos, veio o dirigível, que após várias tentativas conseguiu contornar a Torre Eiffel e por fim a criação e o sucesso do 14 Bis. Paralelamente, Spacca narra as peripécias dos irmãos Wright do outro lado do Atlântico.

Com riqueza de detalhes, como a visita de Santos Dumont à princesa Isabel, o relógio de pulso criado por Cartier e o detalhe do design do chapéu panamá, inseparável companheiro do aviador, Spacca conta as façanhas dos primórdios da aviação e a decepção de Alberto com o uso de sua invenção para a guerra, o que o levou ao suicídio.

Um testemunho mais visceral acompanha o volume de ‘Na Prisão’ (Conrad), mangá em primeira pessoa do japonês Kazuichi Hanawa. No final de 1994, ele foi preso por porte ilegal de armas. Julgado meses depois, foi condenado a três anos de prisão. Depois de conseguir liberdade condicional por bom comportamento, começou a colocar no papel o que se lembrava do ambiente e da rotina que viveu na penitenciária. Daí vem a surpresa.

Se, no Brasil, tal relato seria repleto de violência e maus-tratos, Hanawa retrata uma rotina marcada pela ordem, disciplina e pela quantidade impressionante de normas e regulamentos. E ele mostra que isso não resulta em um ambiente livre da opressão, pois tal procedimento beirando à perfeição leva ao lado mais cruel do aprisionamento: a perda da identidade. E, curiosamente, é justamente essa vida desprovida de ódio, beirando entre a indiferença e a frieza, que revela outra face dos problemas carcerários.

Uma crueldade bem mais amena e repleta de diversão marca outro importante lançamento do fim de ano: a republicação, pela Companhia das Letras, das aventuras do jovem repórter Tintim. Criado por Hergé, pseudônimo do belga Georges Rémi, ele marcou gerações: já vendeu 250 milhões de exemplares e foi traduzido para 26 línguas. Algo tão fascinante que Charles de Gaulle disse certa vez: "Meu único rival internacional é Tintim."

Hergé criou um herói ingênuo, talvez pelo fato de o autor ter sido escoteiro na infância. A generosidade de Tintim o faz viajar o mundo para ajudar aqueles que precisam dele, mas ao mesmo tempo, é astuto e corajoso. "De certa forma, Tintim é o garoto que eu gostaria de ter sido", disse Hergé.

O jovem de rosto redondo e topete louro encanta gerações mesmo vestindo a mesma calça de golfista e o blue jeans dos anos 30. A primeira história foi publicada em 1929. Independentemente do tempo, o que atrai os leitores em suas histórias é a aventura. Tintim sempre viaja, vai a lugares exóticos, faz uma série de descobertas e encontra pessoas diferentes. Assim como nas brincadeiras de criança, Tintim é livre para fazer aquilo que desejar.

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