Adeus

Belchior e a poesia dos angustiados

Foto: Arquivo

 

“A minha alucinação / é suportar o dia a dia / e meu delírio / é a experiência / com coisas reais”. “Alucinação” não é, nem de longe, a mais popular das canções de Belchior, cantor e compositor que morreu no último domingo (30), em Santa Cruz do Sul, após o rompimento de uma artéria. Mas talvez seja seu melhor retrato, sua autobiografia não autorizada, sua verdade escrita em canção. Mais que todos nós, Belchior viveu as angústias da vida, retratou-as em suas músicas e acabou vencido por elas. A reclusão que escolheu para si nos últimos anos de sua vida tem menos a ver com as crises de corpo, e muito mais a ver com as crises de alma. Belchior era alma, Belchior era grito e fúria, era lágrima e silêncio. Era a soma de todas as nossas incoerências.

Fãs recebem o corpo de Belchior em Sobral, terra natal do cantor

Ele faz parte de uma seleta turma de artistas que viveu pela arte que construiu – e, hoje podemos dizer com dor, morreu por ela. Gente como Sérgio Sampaio, que lutou por um sucesso que nunca veio (“fui tratado como um louco, enganado feito um bobo / devorado pelos lobos, derrotado sim…). Como Raul Seixas, que não soube vencer os demônios com os quais convivia (“esse caminho que eu mesmo escolhi / é tão fácil seguir / por não ter onde ir…). Ou como Taiguara, que tinha que suportar a tortura da censura e a tortura da vida (“meu desespero a vida num momento / a fossa, a fome, a flor, o fim do mundo…”). E Renato Russo, que lutou para ser o que queria, e não o que o mundo queria que ele fosse (“vamos festejar a inveja / a intolerância e a incompreensão…”).

Belchior relatou na sua obra a vida do retirante moderno. Se ele não teve que sair fugido, mas sim por vontade própria (ao lado de Tetty, de Ednardo e de Fagner) para fazer a carreira no Rio de Janeiro e em São Paulo, teve que lutar para chegar ao sucesso. Sucesso que descobriu ser tão frágil quanto as velas do Mucuripe. A canção que lhe fez ficar conhecido como compositor, que virou clássico da MPB na voz de Elis Regina e de Roberto Carlos, abriu as portas de um mundo de sonho e de dor. “Meu corpo que cai do oitavo andar / e a solidão das pessoas / dessas capitais…”.

A arte superior de Belchior, aí já compondo sozinho (“Mucuripe foi feita com Fagner), se afirmou com uma leva de canções na segunda metade da década de 1970. “Velha Roupa Colorida”, “Apenas um Rapaz Latino-Americano”, “Medo de Avião”, “A Palo Seco” (esta de um pouco antes), “Divina Comédia Humana”, “Galos, Noites e Quintais”. E, claro, seus dois maiores sucessos, duas canções que o retratam tanto, mas que ficaram mesmo eternizadas por Elis e por Vanusa.

Pela ordem cronológica, primeiro veio “Como Nossos Pais”. O arranjo de César Camargo Mariano, o trabalho de banda e orquestra e a força da interpretação de Elis Regina são espetaculares, sim. Mas as angústias de Belchior se expressam na letra cheia de confissões. “Quero lhe contar como eu vivi / e tudo que aconteceu comigo”. Mais perto da censura e do terror da ditadura, a constatação de que “eles venceram / e o sinal está fechado pra nós / que somos jovens” era uma lamentação de um artista que já ali demonstrava a falta de paciência com o mundo que o cercava. Até porque “ainda somos os mesmos / e vivemos como os nossos pais”. Belchior queria mudar, queria “o cheiro da nova estação”. Estamos vendo que ela nunca veio.

Vanusa consagrou “Paralelas”. O artista notava a própria transformação em mercadoria. Virara “ídolo”, aparecia na TV, sua música estava nas novelas. Era preparado para ser concorrente de Roberto Carlos. E não era o que ele queria. “Como é perversa a juventude do meu coração”. A angústia está lá, como em todas as suas letras. “No apartamento, oitavo andar / abro a vidraça e grito / grito quando o carro passa / teu infinito sou eu, sou eu, sou eu…”. O segredo da tristeza do poeta está nos versos “e no escritório em que eu trabalho / e fico rico, quanto mais eu multiplico / diminui o meu amor”.

Belchior não queria diminuir seu amor. Nem diminuir sua arte à mera ação comercial. Por isso não entrou no “sistema”, e seu sucesso minguou com o passar do tempo. Não mudou, o que mudou foi o mercado. “Amar e mudar as coisas / me interessa mais”.

As alucinações de Belchior são as nossas. Ele apenas teve a coragem de vivê-las sem fugir delas. E expondo sua alma através das canções. Por isso a obra dele ficara quando ele escolhera sumir, e seguirá agora que ele partiu. Enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não, Belchior irá cantar.