Barbatuques avançam com os sons do corpo

A viagem que se faz aqui remete aos primórdios do que pode ter sido a primeira ideia sonora. Pois quando não havia muitos pensamentos musicais entre o céu e a terra, o corpo era a orquestra, com solos de boca e ritmos de coração. Os Barbatuques refazem com sua trajetória um caminho de descobertas à base de muita pesquisa, avançando a cada disco em possibilidades que não são apenas rítmicas.

Mais que em seus trabalhos anteriores, reunidos em quatro CDs e dois DVDs, o novo disco, Ayú, que será lançado em shows nesta sexta, 4, e sábado, 5, no Auditório Ibirapuera, traz a harmonia corporal trabalhada em timbres e ruídos prolongados a ponto de serem promovidos a notas. Algo a mais do que se chegar ao sincronismo rítmico que sempre foi sua força de impacto. É um novo momento de um grupo que tem de se mexer muito para não se repetir nas limitações da percussão. Um desafio sem-fim.

Ayú chega a um resultado no limite da linha que divide um grupo percussivo de um grupo vocal. Se cantarem letras um pouco mais do que o suportável pela proposta, abrindo vozes com intenções harmônicas, terão perdido a ideia e atravessado a fronteira. Por isso, peças como a faixa título Ayú podem ser consideradas tão complexas, mesmo preservando a abrangência de sua comunicação. As notas saem de frases verbais, capturando a música da fala. Uma música que rompe a muralha erguida pela pressão dos graves de boca e vai recebendo forma até ganhar uma rápida letra na voz de Marcelo Pretto.

O corpo ainda é o centro, mesmo quando o universo de fontes do grupo se amplia. A questão é que a experiência da visão, algo que não se tem em discos, é quase tão determinante quanto a audição. Uma viagem é assistir ao Barbatuques no palco. Outra, mais limitadora, é apenas ouvi-los. A festa de Kererê, por exemplo, enche os ouvidos com um bombardeio bem calculado de timbres, mas identificar de onde eles saem é o que faz a brincadeira ser completa.

Dois homens que participam do disco podem ser chamados de mestres deste grupo. Naná Vasconcelos faz primeiro Tá na Roda. Uma grata presença registrada em momento de inspiração e respeito, que o pernambucano Naná, que neste momento está internado para se tratar de um câncer no pulmão verbaliza em um vídeo promocional colocado na internet.

E Hermeto Pascoal aparece com todas as suas marcas em Lá na Casa da Madame Eu Vi. Uma lição de palmas à frente da boca, assobios e sobreposição de vozes que deixa clara a referência maior neste momento de pesquisa do grupo. Difícil um som corporal que já não tenha sido experimentado por Hermeto, apesar de suas intenções serem mais instrumentais do que percussivas.

“A lição de casa para gravarmos este disco era mesmo depurarmos mais, estudarmos as tessituras do som de boca. A evolução no sentido harmônico”, diz Fernando Barba, integrante e fundador do grupo. Ele conta que, apesar de não ser visível, há uma cena de música percussiva e corporal em São Paulo mais vibrante do que parece. “Eu diria que São Paulo é hoje a capital mundial desta música. São vários grupos de pesquisa que não aparecem na mídia fazendo este trabalho.”

O projeto anterior do grupo teve o foco no público infantil, Tum Pá, dando significados novos para brincadeiras de crianças. Ali, o Barbatuques reforçou uma base de fãs que já existia e confirmou a força de sua linguagem, por mais que elaborada, ainda primitiva. O Tum Pá entrou para sua agenda e não parece querem sair. “Ainda fazemos muito esse show”, conta Barba.

Ser um grupo musical de percussão e possibilidades vocais sem ser um grupo vocal e ser um coletivo artístico sem ser excêntrico ou circense. Com o tempo, Barba acredita que o público entende melhor uma proposta, mesmo estando ela em mutação. “Nosso disco é muito usado em salas de aula, por exemplo. Isso nos ajudou a aumentar o repertório de percussão corporal.”

Barba começou a batucar cedo. Quando passou a ter resultados de mais impacto, ouviu os primeiros pedidos para que ensinasse as pessoas a fazerem aquilo. Um grupo de estudos foi criado em 1995 e o nome Barbatuques, em homenagem ao Barba se deu sobrenome, passou a ser usado como uma brincadeira. “Lembro que o Stomp (grupo percussivo norte-americano que veio pela primeira vez ao Brasil em 1996) foi uma de nossas referências também. Mas o grupo de estudos se aperfeiçoou naquela proposta.” A participação, há oito anos, de uma edição do International Body Music Festival levou o grupo a conhecer Keith Terry, um dos mais respeitados nomes da percussão corporal no mundo.

O disco Ayú é em si um amadurecimento de um coletivo que fez várias viagens pelo mundo, entrando em contato com a infinidade de expressões de música corporal muitas vezes inimagináveis.

Soa assim um disco feito com apetite de busca por um resultado novo, fora das caixinhas de palmas e sapateados. Entre um e outro, aliás, existe um universo a ser explorado, que pode passar por uma revalorização dos próprios sons na era em que ruídos não param de surgir. Se estiver certa a teoria de que a música tenha de voltar a seu princípio depois de experimentar tudo o que poderia, os Barbatuques já voltaram. E agora, começam a descobrir tudo de novo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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